Folha de S. Paulo


Rádio busca preservar idioma andino

Meio escondido atrás de uma moita de equipamentos eletrônicos, numa recente noite de sexta-feira, Segundo Angamarca colocou seus fones de ouvido e olhou ao redor da sala, o improvisado estúdio de uma rádio via internet que funciona no seu apartamento no bairro do Bronx, em Nova York.

"Estamos prontos, não?", perguntou ele em espanhol. Apertou alguns botões em um console e, inclinando-se sobre o microfone que transmitia ao vivo, começou a falar nos fonemas percussivos de uma língua completamente diferente, com raízes nos altiplanos andinos do seu Equador natal.

"Estamos aqui!", anunciou. "Estamos aqui esta noite para você, para ajudar a trazer felicidade a partir da rádio El Tambo Stereo".

E assim começou a transmissão inaugural de "Kichwa Hatari", talvez o único programa radiofônico dos EUA em idioma kichwa, uma variante equatoriana do quéchua, língua indígena amplamente falada na América do Sul, principalmente na Bolívia, Equador e Peru.

Bryan Thomas/The New York Times
O radialista Segundo Angamarca após transmissão de
O radialista Segundo Angamarca após transmissão de "Kichwa Hatari", programa semanal on-line

Apesar de sua origem humilde, o objetivo primordial do programa não tem nada de modesto: salvar uma linguagem em processo de desaparição.

Estudiosos dizem que o uso do kichwa tende a declinar no mundo todo, em parte devido ao aumento do uso do inglês e do espanhol entre os falantes nativos. Na crescente diáspora equatoriana para os Estados Unidos, a manutenção da língua, dizem os estudiosos, é prejudicada pela falta de aulas de kichwa e outros recursos, bem como pela ânsia de muitos migrantes equatorianos e seus filhos por se integrarem rapidamente.

O programa semanal é uma colaboração entre Angamarca e os outros dois apresentadores: Charlie Uruchima, um filho de equatorianos que faz pós-graduação na Universidade de Nova York, e Luis Antonio Lema, equatoriano que é professor de idiomas e tradutor jurídico.

A escola pública que o filho de Lema frequenta, no Bronx, tem cerca de 50 famílias de língua kichwa, e alguns dos pais não falam inglês nem espanhol.

O programa de rádio aborda as preocupações dos falantes do kichwa, incluindo o problema do isolamento linguístico de quem não fala inglês nem espanhol.

O programa vai ao ar desde 25 de julho, transmitido a partir de um quarto vago no apartamento onde Angamarca mora com sua família. Os apresentadores já tiveram dois convidados: Elva Ambía Rebatta, fundadora da Iniciativa Quéchua Nova York, e Fabian Muenala, um dos fundadores da Kichwa Nation, grupo cultural com sede em Nova York.

Um doutorando em antropologia na Universidade de Nova York, atualmente realizando um documentário sobre Ambía Rebatta, filmou o evento, e um diretor de programa da Aliança das Línguas Ameaçadas, que tem a sua sede em Nova York, gravou o programa.

Uruchima usava uma camiseta com a seguinte frase, em quéchua: "Estou sonhando ou escuto quéchua?".

"Estamos aqui para ajudar vocês", disse Angamarca aos ouvintes. "Hoje vamos apresentar músicas, histórias. Também vamos aprender."

No primeiro intervalo, Angamarca, olhando a tela do computador, exclamou: "Cento e doze!". Havia 112 pessoas escutando a transmissão, além de outras que acessaram o streaming de vídeo ao vivo no site da rádio.
Durante duas horas, âncoras e convidados conversaram sobre língua, cultura e atualidades, além de falarem sobre suas vidas.

Ao final do programa, Angamarca disse aos ouvintes: "Deveríamos nos envergonhar porque, enquanto os estrangeiros têm interesse em nossa língua kichwa e nas tradições indígenas, nós mesmos, como kichwas, constantemente temos vergonha da nossa língua e tradições".

"Tomara que programa represente um incentivo para começarmos a valorizar a nossa língua e cultura neste país."

Já fora do ar, Uruchima surpreendeu o grupo com um bolo decorado com as palavras "Kichwa Hatari!".

"Podemos fazer muita coisa se estivermos unidos", disse Ambía Rebatta. "Isto é como um sonho."


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