Folha de S. Paulo


Wallenberg 'certamente não fez tudo sozinho', diz biógrafa do 'Schindler sueco'

Ingrid Carlberg é autora de um tomo de 784 páginas sobre Raoul Wallenberg que, lançado em 2012 pela editora Norstedts, venceu o prêmio da Academia Sueca para biografias.

Intitulado "Tem um Quarto Aqui Esperando por Você...", o livro terá edição em inglês no ano que vem.

A obra mistura seu talento de contadora de histórias e uma extensa pesquisa feita em lugares como o campus da Universidade de Michigan, em Ann Arbor (EUA), onde o biografado estudou arquitetura, e nos corredores da burocracia moscovita.

A historiadora contemporânea afirma que Wallenberg foi um herói que salvou cerca de 100 mil judeus-húngaros que seriam enviados pelos nazistas a campos de extermínio.

Leia a seguir os principais trechos de entrevista exclusiva concedida à Folha.

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Folha - Para você, quem foi Raoul Wallenberg? Por que, afinal, ele decidiu ser nomeado segundo-secretário da representação diplomática da Suécia e salvar judeus-húngaros nos seis meses que antecederam o fim da guerra?

Ingrid Carlberg - Wallenberg foi inicialmente um homem de negócios sueco. Ele trabalhou numa firma sueco-húngara de exportação e importação onde comprava alimentos para enviar para a Hungria. Mas ele era também parte de uma família proeminente, de uma dinastia empresarial sueca. Perdeu o pai antes mesmo de nascer, mas seus tios lideravam um império de negócios no país –e o banco Stockholms Enskillda está no centro dessa fortuna, que inclui ações de empresas como a aérea SAS, a SAAB, que produz carros e aviões, e a Electrolux. Mas Raoul, no entanto, não era muito aceito no âmbito desses negócios familiares. Em 1944, quando os alemães invadiram a Hungria, ele ficou estarrecido com essa situação e decidiu se engajar. Seu patrão, Kalman Lauer, que era judeu-húngaro, entrou em pânico com as notícias de antissemitismo e de perseguição aos judeus em Budapeste. À essa altura, entre março e abril de 1944, Wallenberg mergulhou no assunto do resgate decidido a entrar em cena, até porque seu chefe não poderia ir. E, usando a influência familiar, ele se ofereceu para integrar o corpo diplomático temporário da Suécia na capital da Hungria. É bom lembrar que ele tinha na ocasião pouco mais de 30 anos e que havia vivido no exterior muito tempo: quatro anos e meio em diversos países, mais três anos e meio estudando nos EUA e meio ano na África do Sul. Também tinha passado quatro meses em Haifa (hoje Israel, naquela época, Palestina). Em 1936, em Haifa, ele morou com diversas famílias judias-alemãs e, então, se inteirou das atrocidades nazistas: foi ali que ele definitivamente entrou em contato com a discriminação que se iniciava nos anos 1930. De todo modo, Raoul Wallenberg não era de muitos discursos e nem de escrever artigos com suas opiniões; era, sim, uma pessoa prática, com pés no chão, queria agir. A oferta de desembarcar na Hungria para resgatar pessoas era tudo o que ele mais queria a essa altura.

Por que a União Soviética nunca admitiu tê-lo prendido? Qual é a sua versão para o desaparecimento de Wallenberg?

Essa resposta vale um prêmio. É estranho que o governo da Suécia tenha logo sido informado pelo próprio Exército Vermelho, que estava avançando em Budapeste, do encontro com Wallenberg. Uma mensagem diplomática soviética, enviada em meados de janeiro de 1945 ao governo da Suécia, dizia que ele estava seguro. Mas, no dia seguinte, o ministro da defesa Bulganin, da União Soviética, determinou que ele fosse detido em Moscou por razões que são desconhecidas. É possível concluir, no entanto, que pode ter sido uma ordem do próprio Stálin, pois outras pessoas também foram presas. Teve então início uma campanha de desinformação por parte dos russos, afirmando de maneira indireta que Wallenberg poderia ter sido morto em Budapeste. Mesmo nas emissões de rádio que os russos faziam em húngaro, essa versão circulou. E o governo sueco foi instado a achar que, afinal, nada se sabia ao certo sobre seu paradeiro.

A sra. acha que de alguma maneira ele pertencia aos quadros do serviço secreto norte-americano, à OSS?

Tudo então era uma bagunça na Budapeste de 1944 e os serviços secretos de vários países estavam lá, mesmo o dos países neutros durante a guerra. Raoul Wallenberg também tinha esses contatos, é difícil negar isso, mas não os usava num sentido operante. Mais importante: a operação sueca em Budapeste era em grande parte um apêndice da operação dos EUA, decidida no âmbito administrativo para ser uma cooperação bilateral informal, pois os norte-americanos não podiam formalmente serem representados em Budapeste, pois afinal havia uma guerra em curso. A presença de Wallenberg era, sem dúvida, parte de uma iniciativa do "War Refugee Board", uma entidade norte-americana fundada em 1944 para salvar os judeus europeus. O que esse comitê fazia era financiado pelos EUA, mas dirigido como uma missão diplomática sueca. O contato de Raoul Wallenberg na embaixada dos EUA em Estocolmo, Iver Olsen, era o responsável local pelo "War Regugee Board". Olsen era também representante da OSS na Suécia. De todo modo, ele testemunhou dizendo que Wallenberg nunca havia se envolvido em assuntos da OSS. Não há também evidências documentais de que isso ocorreu.

Quantas pessoas ele poderia ter salvo entre julho de 1944 e janeiro de 1945?

Essa é uma questão difícil e há muitas fantasias sobre esse assunto. Nenhum número é definitivo quanto a isso. Depende como você define resgate e o que é devido à sua ação direta e pessoal. Ou decorreu da atividade de organizações. Não é fácil definir quantas pessoas foram salvas através de negociações diretas de Wallenberg ou simplesmente pelo fato de que seu nome inspirava respeito ou medo. Ele certamente não fez tudo sozinho e a organização que ele geria empregava 350 pessoas, a maior parte deles judeus-húngaros e, também, suecos voluntários que gozavam de imunidade diplomática. Mas vamos tentar estimar sua ação: se você pensar em ações de resgate direto nas ruas e o trabalho na região de Budapeste que ficou definida como Gueto Internacional, e também nas negociações diplomáticas, eu diria que ele salvou diretamente entre 30 mil e 50 mil pessoas. Basta dizer que foram 10 mil os judeus que ganharam o salvo conduto sueco ("schutz pass") para morar no Gueto Internacional –e não no velho gueto central de Budapeste, onde as pessoas passaram fome até morrer, enquanto no Gueto Internacional os que tinham passe sueco recebiam alimentos. Também levo em conta nessa resposta duas importantes negociações que levaram os alemães a adiar a evacuação de 35 mil judeus. Essas negociações provavelmente salvaram suas vidas também. Wallenberg ainda conseguiu que 15 mil judeus-húngaros que haviam sido enviados para campos de trabalhos forçados voltassem a Budapeste. Ao final, os alemães estavam muito nervosos, pois era cada vez mais óbvio que perderiam a guerra...

1937 - Keystone/Getty Images
Raoul Wallenberg posa para foto em 1937, ainda antes de se tornar diplomata
Raoul Wallenberg posa para foto em 1937, ainda antes de se tornar diplomata

Wallenberg era reconhecido pelos judeus-húngaros como uma pessoa envolvida nessa operação de salvá-los?

Como disse antes, ele não estava trabalhando sozinho. Ele nunca teria salvado tanta gente sem seus companheiros de missão e os 350 funcionários que recrutou. Ele era um grande organizador, além de uma pessoa que também se envolveu pessoalmente em ações de resgate. Há 70 anos, nas caóticas derradeiras semanas de 1944, ele era o último diplomata de um país neutro que ainda percorria as ruas, negociando face a face com os brutais assassinos nazistas. Sim, sua bravura foi notada por alguns dos judeus-húngaros, especialmente por alguns que viviam no Gueto Internacional, e muitos o tinham na conta de uma figura heroica, de um messias sueco.

O que a sra. sabe sobre os encontros entre Raoul Wallenberg e Adolf Eichmann?

Há uma versão de que Wallenberg teria convidado Eichmann para jantar, e esse fato está em muitos dos livros que contam a sua história. Mas é possível que isso não tenha, de verdade, acontecido. Estou convencida de que houve um encontro, talvez não um jantar, mas em outras circunstâncias. Raoul Wallenberg, é certo, tinha três números de telefone de Adolf Eichmann em sua agenda pessoal. Agenda que, aliás, a KGB [serviço secreto da ex-URSS] enviou para a sua família em circunstâncias especiais, durante a "glasnost", isso já em 1989.

Falando mais sobre seu desaparecimento: havia rumores de que havia barras de ouro dentro do carro de Wallenberg quando o Exército Vermelho o capturou. Isso é verídico? De quem seria esse dinheiro?

Não sabemos ao certo o que ele tinha no seu veículo e o que o levou a encontrar os oficiais soviéticos do 2º Exército Ucraniano na ocasião, quando ele chegou ao centro de Budapeste, vindo da região leste da cidade.
Há testemunhos de que ele tinha um tanque reserva cheio de jóias e com alguma quantidade de ouro também. Quem sabe? Não era propriedade roubada, isso com certeza não era! Os judeus-húngaros deixavam valores sob a proteção sueca, seja na embaixada, seja no escritório de Wallenberg. É correto afirmar, no entanto, que sua prisão não foi causada por isso. Na verdade, ele não foi preso, mas voluntariamente cruzou o front para fazer contato com os oficiais soviéticos e tentar uma linha de colaboração para resgatar os judeus em Budapeste. Wallenberg ficou alguns dias percorrendo a cidade e falando com as tropas soviéticas até que, surpreendentemente, foi preso por essas tropas e enviado para Moscou. As discussões, naquele momento, mudaram de foco e ele foi detido e... desapareceu.


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