Folha de S. Paulo


Presos fazem greves de fome em prisão dos EUA no Afeganistão

Às vezes eles deixavam de comer para protestar contra a água de beber suja. Outras vezes deixavam de comer porque seus companheiros eram colocados em celas isoladas. Ou deixavam de comer para protestar contra o pouco acesso que tinham ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), sua única fonte de ligação com suas famílias e o mundo externo. Detentos não afegãos que os EUA mantêm em sigilo quase total no Afeganistão vêm fazendo uma série de greves de fome, segundo o "Guardian" constatou, que são semelhantes, embora em escala menor, aos protestos em Guantánamo que chamaram a atenção do mundo no ano passado.

A ocorrência das greves de fome foi confirmada por múltiplas fontes e pelo depoimento em primeira mão de um ex-detento, não obstante as forças armadas americanas terem se negado a revelar praticamente qualquer coisa sobre as condições de detenção de quase 40 homens mantidos numa seção de uma prisão, conhecida como a Instalação de Detenção de Parwan, na periferia da base aérea de Bagram.

Embora os EUA não mantenham mais afegãos detidos em Bagram, ainda mantêm no local 38 prisioneiros não afegãos, em sua maioria paquistaneses. Quase 13 anos após o 11 de setembro, eles formam o conjunto mais secreto de prisioneiros ainda mantidos pelos EUA. Um detento paquistanês libertado recentemente de Bagram disse que as greves de fome são motivadas pela falta de opções.

"Era o único jeito para protestar e conseguir coisas que queríamos. Os americanos não queriam falar conosco; nunca se sentavam conosco à mesa para discutir os problemas", disse Abdul Sattar, pregador de 26 anos que passou dois anos e meio encerrado em Bagram até ser libertado em maio. "Na maior parte do tempo eles nunca nos ouviam. Tínhamos que comer alguma coisa porque estávamos fracos demais e não continuaríamos vivos."

Sattar, que falou com o "Guardian" pelo telefone com a ajuda de um intérprete, contou que participou de cinco ou seis greves de fome durante o tempo que passou em Bagram. Durante as greves de fome, se negava até a tomar água. Quando foi capturado por forças americanas na província de Paktika, suspeito de portar armas em seu carro -acusação que faz questão de negar–, Sattar pesava 75 quilos. Hoje, diz que pesa 50. As greves de fome são feitas por reivindicações menores que as de seus colegas em Guantánamo, que tentam chamar a atenção para a política de detenção por tempo indeterminado; algumas duraram mais de um ano.

Em Bagram, duram entre sete e 15 dias e focam queixas específicas, como o confisco de livros ou a impossibilidade de comunicar-se com o CICV por Skype. Sattar disse que soube de no máximo uma ou duas ocasiões em que um detento foi alimentado à força, algo que ocorreu com frequência no auge das greves de fome em Guantánamo.

Os detentos tinham a esperança de que a notícia de suas greves de fome penetrasse o sigilo em torno de sua detenção. "Sempre pensávamos que se pessoas da mídia soubesse que nós, na prisão, estávamos protestando com uma greve de fome, nos ajudariam, seriam nossos salvadores e as coisas melhorariam. Sempre que protestamos, as pessoas ficaram sabendo: as autoridades e os governos envolvidos, como o governo paquistanês ou governos de países árabes que tinham cidadãos em Bagram", disse Sattar.

Em 2013, a notícia das greves de fome em Guantánamo, que acabaram ganhando a adesão de dois terços dos detentos, provocou ultraje global e levou o presidente americano, Barack Obama, a redobrar os esforços frustrados e esquecidos de sua administração para fechar a prisão. Diferentemente de Guantánamo, detentos não afegãos em Bagram não têm o direito legal reconhecido de contestar sua detenção. Eles não têm acesso a advogados.

Os observadores de direitos humanos que vão e vêm de Guantánamo, devorando picles fritos no pub irlandês da estação naval, nunca vão para Bagram. Apenas o CICV visita os prisioneiros de Bagram e jurou segredo em troca do direito de acesso. Quase nada sobre a população não afegã residual em Bagram é do conhecimento público.

Um conselho de revisão militar avalia a utilidade de mantê-los detidos. Enquanto a administração Obama não mandou mais prisioneiros a Guantánamo, ela tem mandado mais detentos não afegãos a Bagram após operações de forças especiais. Até um relatório ao Congresso com os nomes dos detentos restantes, exigida pelos termos da lei de defesa do ano passado, é classificado como sigiloso.

O "Guardian" soube que o Pentágono está preparando uma versão não classificada, mas não está claro se o público terá acesso a ela. "O fato de estarem desesperados o suficiente para fazer greve de fome indica não apenas que estão sofrendo imensamente, mas que esperam que pessoas de consciência lancem um chamado por mudanças em sua situação", disse Tina Foster, do grupo de direitos humanos International Justice Network.

As autoridades americanas não quiseram comentar as greves de fome em Bagram, mas indicaram que as veem como meios de protesto e comunicação não violento e uma ameaça menos grave à vida dos detentos que as greves de fome em Guantánamo.

Amin al-Bakri, iemenita detido na Tailândia em 2002 e posteriormente levado a Bagram, fez greve de fome recentemente para protestar por ainda estar detido, mesmo depois de um conselho de revisão militar ter autorizado sua soltura, revelou seu advogado, Ramzi Kassem, professor de direito na City University de Nova York. Mas o sigilo extremo que cerca Bakri e outros detentos não afegãos em Bagram impede o advogado de acumular informações completas e atualizadas sobre seu cliente.

As forças armadas não permitem que advogados falem em particular com seus clientes em Bagram, obrigando Kassem a obter até as informações mais básicas sobre Bakri de familiares deste e outras testemunhas. Nas raras ocasiões em que os não afegãos detidos em Bagram são alvo de atenção de parlamentares americanos, é para criar controvérsia em torno da libertação ocasional de um ou outro.

Em audiência na semana passada com o general John Campbell, aventado para ser o último comandante das forças dos EUA e Otan no Afeganistão, Saxby Chambliss, o republicano sênior no comitê de inteligência do Senado, aludiu aos detentos não afegãos como "combatentes hardcore" e "inimigos dos Estados Unidos".

Mas Sattar disse: "Éramos, na maioria, comerciantes e pessoas que fomos com finalidades recreativas, porque algumas áreas do Afeganistão são mais frescas e bonitas e as pessoas costumavam ir ao Afeganistão com suas famílias para passar o verão".

A missão da Otan no Afeganistão e sua força-tarefa 435, responsável por detenções, encaminharam os pedidos de declarações ao Pentágono, que não respondeu a perguntas específicas do "Guardian" sobre os detentos, as greves de fome ou as medidas tomadas pelos EUA em resposta a elas.

Tradução de CLARA ALLAIN


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