Folha de S. Paulo


Papas canonizados não foram vencidos por tragédias, diz Francisco

Diante de uma multidão na Praça São Pedro, os papas João Paulo 2º e João 23 foram canonizados pelo papa Francisco neste domingo em uma missa sem precedentes na história da Igreja Católica.

Segundo Francisco, ambos "foram sacerdotes, bispos e papas do século 20, conheceram as suas tragédias, mas não foram vencidos por elas".

O papa mencionou ainda a importância do Concílio Vaticano 2º, encontro convocado por João 23 em 1962 que reformou diretrizes e abriu as portas da Igreja para o mundo moderno.

"Na convocação do Concílio, João 23 demonstrou uma delicada docilidade ao Espírito Santo, deixou-se conduzir e foi para a Igreja um pastor, um guia-guiado. Este foi o seu grande serviço à Igreja; foi o papa da docilidade ao Espírito", afirmou.

"E esta é a imagem de Igreja que o Concílio Vaticano 2º teve diante de si. João 23 e João Paulo 2º colaboraram com o Espírito Santo para restabelecer e atualizar a Igreja segundo a sua fisionomia originária", acrescentou Francisco, que depois da missa passeou de papa-móvel pela Praça São Pedro.

A cerimônia contou com a presença do papa emérito Bento 16, que, sentado ao lado dos cardeais, recebeu os cumprimentos do sucessor. A celebração é chamada em Roma de o "dia dos quatro papas" por causa da presença de dois papas na canonização de outros dois.

Depois de estimar a presença de um milhão de pessoas, o Vaticano anunciou um balanço de 800 mil, sendo 500 mil na praça São Pedro e o restante nos arredores.

Segundo o Vaticano, 97 delegações e organizações internacionais prestigiaram a cerimônia - nenhuma representando oficialmente o Brasil. O brasileiro José Graziano da Silva compareceu, mas como representante da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura).

Milhares de peregrinos passaram a noite em vigília pelos arredores da praça e igrejas de Roma para homenagear os novos santos católicos. Bandeiras da Polônia, terra de João Paulo 2º predominaram, mas caravanas de todas as partes do mundo foram a Roma, muitas delas do Brasil.

RECADO

O Concílio Vaticano 2º, mencionado no discurso de Francisco, é apontado por especialistas em Vaticano como o principal recado dele para explicar a decisão de canonizar o italiano João 23 ao lado do polonês João Paulo 2º.

Ou seja, o papa Francisco faz um gesto religioso, mas também político: João 23, reformador da Igreja e de rápido pontificado (1958-1963), tem a mesma importância histórica que João Paulo 2º, um dos mais populares e que ficou quase 27 anos à frente do Vaticano.

Em tempos de recentes escândalos, ligados sobretudo a abuso sexual entre padres e corrupção no Banco do Vaticano, não foi à toa a decisão do papa. Para especialistas em Vaticano ouvidos pela Folha, é evidente o recado: é importante ser popular, como era João Paulo 2º e Francisco agora parece ser, mas é essencial buscar reformar e atualizar a Igreja, como fez João 23.

"Ele move o foco da canonização do João Paulo 2º em direção ao Concílio Vaticano 2º e também tenta dizer que uma santidade está cima das diferenças dos papados", diz o jornalista americano John Thavis, que cobriu o Vaticano por 30 anos e é autor do recém lançado livro "Diários do Vaticano".

Estudioso daquele Concílio e autor de obras sobre os dois papas canonizados, o professor italiano Alberto Melloni avalia que Francisco quer passar a mensagem de que a reforma dos anos 60 foi fundamental para a Igreja, apesar de alguma resistência de conservadores, entre eles o próprio Bento 16, que participou como especialista em teologia.

"O papa Francisco quer dizer: o Concílio foi sim muito bom e seus resultados também. Vale lembrar que João Paulo 2º, embora mais conservador que João 23, foi o último papa que era bispo naquele encontro. Isso reforça que o Concílio é o ponto em comum e o principal recado da canonização", disse.

Aquela reunião, por exemplo, tomou decisões importantes para o futuro da Igreja. Entre outras coisas, aboliu a obrigação de as missas serem celebradas em latim, de o celebrante ficar de costas aos fieis, além de ter melhorarado o diálogo com a população não católica (como protestantes, por exemplo) e não cristã, como os judeus.

Reformador, João 23 ficou também conhecido como o "Papa Bom", pelo postura simples e simpática, estilo que o atual papa também tem buscado à frente da Igreja.

Ele morreu em 1963, ainda durante o Concílio, concluído dois anos depois por seu sucessor, Paulo 6º. A canonização hoje tem ainda um componente brasileiro, conta o professor Alberto Melloni: "É a realização de um desejo que começou durante aquele Concílio, quando o bispo brasileiro Hélder Câmara pediu a canonização dele após sua morte, mas o pedido foi recusado por Paulo 6º".

EXCEÇÕES

Bento 16 foi responsável pelo pontapé inicial do processo de beatificação de João Paulo 2º (primeiro passo para canonização), ainda em 2005, logo depois de sua morte. Na época, abriu-se mão do prazo necessário de cinco anos após morrer o postulante para a abertura de um processo.

João Paulo 2º teria curado naquele ano a freira francesa Marie Simon-Pierre Normand do Mal de Parkinson após ela clamar por sua interferência. A freira esteve presente à canonização neste domingo.

O segundo milagre teria ocorrido em 2011 - natural da Costa Rica, Floribeth Mora Diaz, de 51 anos, diz ter sido curada de um aneurisma cerebral. Ela também participou da cerimônia de hoje.

Exceção também foi feita para João 23 virar santo: Francisco dispensou a comprovação de um segundo milagre e decidiu canonizá-lo pelas virtudes em vida. O italiano havia sido beatificado em 2000, por causa da cura de uma mulher em 1966 que teria problemas de estômago.

Segundo o Vaticano, duas relíquias foram usadas na cerimônia: um frasco contendo sangue do polonês João Paulo 2º (que morreu em 2005) e outro com pedaço de pele do italiano João 23 (morto em 1963).

A canonização é o reconhecimento de que aquela pessoa viveu em estado de graça e pode ser venerada por todos os católicos do mundo, especialmente numa datal a ser escolhida para isso.


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