Folha de S. Paulo


Diário de Bagdá, 2003 - Saddam reúne líderes tribais e pede ajuda

Leia texto publicado em 29 de março de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.

"Eles começaram a chegar na última terça-feira. O convite veio do chefe supremo, do marechal-de-campo, de Saddam Hussein ele próprio. Aos poucos, o lobby do Hotel Baghdad, que já viu dias melhores, estava cheio de homens usando dishdasha, os típicos vestidos pretos masculinos utilizados pelo povo árabe que vive em regiões desérticas.

Na cabeça, o smagh (véu) branco com detalhes pretos, para os vindos dos povoados do sul, ou branco com detalhes vermelhos, para os vindos do norte e do oeste. Encimando tudo, o ekal (círculo que prende o véu).

São os xeques, os líderes das tribos que formam o Iraque, tão importantes para a estratégia de Saddam Hussein quanto seus ministros-generais ou os comandantes militares. Fora das (poucas) grandes e médias cidades, quem manda de fato são eles.

Se há alguma chance de o país tentar deter o avanço das tropas da coalizão pelo deserto será pela atuação destes comandantes e suas milícias nômades. Dai o encontro de três dias na capital iraquiana, patrocinado pelo governo e encerrado ontem.

'ENSABOAR'

Foi mais ou menos como quando um governador brasileiro reúne os prefeitos de seus municípios para "ensaboá-los", convencê-los de algo que pode interessar a ambos os lados. Assim, os xeques foram recebidos com comidas típicas, armas, shows e danças -cada tribo tem uma manifestação característica.

No lobby do hotel foram montadas tendas iraquianas, em que os líderes se espalhavam pelos tapetes no chão, pitavam narguilés coletivos com fumos aromatizados de maçã, laranja e abacaxi e tomavam o fraco café local.

O ponto alto foi o discurso de Saddam Hussein -a Folha não conseguiu confirmar se o presidente iraquiano compareceu em pessoa, o que parece improvável nos tempos atuais, por questão de segurança, ou se apenas mandou sua declaração oficial, a mesma que depois seria lida pelos apresentadores da TV estatal.

No texto, o ditador iraquiano pede que os xeques "lutem contra o inimigo onde quer que este esteja", sem que esperem por ordens oficiais dos militares em comando ou por estratégia e plano detalhado.

TRIBOS COMO TIMES

O pedido pode parecer inusitado num país governado com mão de ferro, mas os xeques realmente contam com grande independência em relação ao poder executivo central, até pelo ambiente em que vivem -em pequenas vilas, oásis espalhados pelo deserto ou em caravanas nômades de até milhares de pessoas.

Sua influência é tanta que o próprio Saddam formou seu alto escalão com membros de sua tribo, Bu Nasir, que ficava perto da cidadezinha de Auja, nas cercanias de Tikrit, ao norte da capital.

Mesmo profissionais liberais e pessoas que nasceram em grandes centros urbanos como Bagdá sabem qual a tribo que originou sua família e fala dela como o brasileiro fala de seu time de futebol.

"Eu sou da tribo de Timini, 60 quilômetros a oeste de Bagdá, e sei que meu xeque vai decidir por apoiar a resistência aos invasores", disse à Folha Ali Jaboon, 29 anos, formado em língua alemã na Universidade de Bagdá.

"O inimigo violou suas terras e agora está violando suas tribos e famílias", conclui a declaração de Saddam Hussein. "Se vocês causarem dano a ele, não importa o quão pequeno, ele vai fugir. Não esperem por nossas ordens. Apenas lutem contra ele. Cada um de vocês é um líder militar."

E chega ao detalhe da instrução militar: as milícias tribais devem 1) combater em pequenos grupos; 2) atingir preferencialmente o início e o final dos batalhões, para que estes parem; 3) se o inimigos se retirarem, não é preciso segui-los; mas, se pararem, para descansar na retirada, então novo ataque deve ser feito.

MAIS BOMBAS, E O ANTEBRAÇO DA AMADA

Está virando rotina. Os jornalistas acabávamos de deixar a recém-destruída sede ao lado da Torre Saddam na tarde de ontem quando algo estourou ao lado do ônibus. Bomba? Míssil? Rojão?

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"Kalashnikov", tranquilizou o motorista, mais acostumado aos ruídos das guerras, referindo-se à arma russa utilizada pelo Exército iraquiano. Não convenceu. "Pode ter sido uma bomba pequena, mas que não era um fuzil, não era", disse um jornalista europeu, cinco conflitos nas costas.

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Segundo o ministro da Informação iraquiano, Mohammed Said Al Sahaf, os EUA e o Reino Unido estão usando agora as chamadas bombas "cluster" em seus ataques. Seriam mais barulhentas do que as tradicionais e viriam recheadas de pregos e pedaços de metal, com o objetivo de atingir mais as pessoas do que as construções.

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Já o Hotel Palestine exibe como troféu um furgão cinza com chapa do Kuait. O carro trouxe cinco jornalistas franceses, que acharam que poderiam se desgarrar do comboio das Forças Armadas da coalizão anglo-americana, subir até Bagdá e entrar na cidade sem problemas. Certamente acreditavam na tal "guerra de 72 horas" de que falava George W. Bush antes de iniciado o conflito.

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Foram presos assim que pisaram no hotel. O governo iraquiano não diz seus nomes nem a empresa para a qual trabalham. Os equipamentos e as malas ainda estão lá, no carro. A justificativa oficial é a falta de visto de todos eles.

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Para piorar ainda mais o clima no lugar, que é alvo militar, o pequeno palco em que as autoridades iraquianas dão entrevistas, no centro de imprensa, recebeu uma série de fotos chocantes de civis supostamente feridos durante os bombardeios da coalizão.

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Os rumores mais recentes dão conta de que Saddam Hussein estaria se preparando para fugir para a Síria com a família. Já teriam ido embora para Damasco sua primeira mulher, Sayida, que é mãe de Uday e Qusay, e suas filhas Raghad, Rana e Hala, com três caminhões carregados e 60 seguranças. Opinião dos acima-assinados? Impossível.

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Cada vez mais as crianças estão aparecendo nos eventos públicos para também elas mostrarem seu apoio ao governo. Gritam as palavras de ordem de sempre, com uma diferença: quando cantam "Abaixo Bush! Abaixo Bush!", invariavelmente chamam o presidente dos EUA de "Bôj".

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Ainda são inocentes os iraquianos quando o assunto é mulher -apesar de poderem ter até quatro ao mesmo tempo, legalmente. A parte da anatomia feminina mais desejável, segundo nos dizem os homens, é o antebraço. Existe até doce com o nome do membro: snood al sit, ou literalmente "o braço da mulher".

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Já quando uma mulher bonita passa eles falam "heloa!". Ou seja: "Bonita!". Básicos.

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Ainda são confiantes os iraquianos, também: vimos mais de um motorista deixando pacote de dinheiro no console do carro estacionado na rua. Ninguém rouba.

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Este diário já falou antes de mulheres e chicletes. Pois também não há telefones públicos em Bagdá. Tão poucos que os raros são anunciados com placas enormes.

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Ninguém respeita semáforos nem sinais de trânsito aqui. Vermelho, amarelo e verde são ficção e não querem dizer nada, aparentemente, para os motoristas. Que nos dizem que só está assim porque é guerra. Depois, acabam confessando: mesmo em tempos de paz ninguém pára nos faróis."

Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque

Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque


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