Folha de S. Paulo


ANÁLISE

O que exatamente torna anormal a economia mundial?

Eduardo Anizelli/Folhapress
O economista americano Nouriel Roubini durante entrevista
O economista americano Nouriel Roubini durante entrevista

Desde o começo do ano, a economia mundial vem enfrentando um surto de severa instabilidade nos mercados financeiros, caracterizado por queda acentuada nos preços das ações e de outros ativos de risco.

Uma variedade de fatores está em jogo: inquietações sobre uma aterrissagem dura para a economia da China; preocupações de que o crescimento dos Estados Unidos esteja claudicando em um momento no qual o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) já começou a elevar as taxas de juros; temores de uma escalada no conflito entre Arábia Saudita e Irã; e sinais -especialmente com a queda abrupta dos preços do petróleo e das commodities- de severa fraqueza na demanda mundial.

E há mais. A queda nos preços do petróleo -somada à falta de liquidez no mercado, à alta no endividamento das companhias de energia dos EUA e das companhias de energia e fundos nacionais de investimento frágeis nas economias exportadoras de petróleo- está causando medo de eventos sérios no campo do crédito (calotes) e de crise sistêmica nos mercados de crédito. E há também a preocupação aparentemente incansável quanto à Europa, com uma saída britânica da União Europeia (Brexit) parecendo cada vez mais provável, enquanto partidos populistas de direita e de esquerda ganham terreno em todo o continente.

Esses riscos estão sendo magnificados por algumas tendências sombrias em médio prazo, que implicam crescimento medíocre para todos. De fato, a economia mundial em 2016 continuará a ser caracterizada por uma nova anormalidade em termos de produção, políticas econômicas, inflação e comportamento dos preços de ativos cruciais e dos mercados financeiro.

Assim, o que exatamente torna a economia mundial anormal, hoje?

Primeiro, o crescimento potencial nos países desenvolvidos e emergentes caiu devido ao peso da elevada dívida pública e privada, do rápido envelhecimento das populações (que implica maior poupança e menor investimento) e de uma variedade de incertezas que seguram os investimentos de capital. Além disso, muitas inovações tecnológicas não se traduziram em crescimento maior da produtividade, o ritmo das reformas estruturais continua lento, e a prolongada estagnação cíclica erodiu a base de capacitação da mão de obra e a de capital físico.

Segundo, o crescimento efetivo vem sendo anêmico e abaixo de sua tendência potencial, graças ao doloroso processo de redução de dívidas que está em curso, primeiro nos EUA, depois na Europa e agora nos mercados emergentes pesadamente endividados.

Terceiro, as políticas econômicas -especialmente as políticas monetárias- se tornaram mais e mais heterodoxas. De fato, a distinção entre política fiscal e política monetária está cada vez menos clara. Há dez anos, quem já havia ouvido falar de siglas como Zirp (política de taxa de juros zero), QE (relaxamento quantitativo), CE (relaxamento de crédito), FG (orientação futura), NDR (taxas negativas de depósito) ou UFXInt (intervenção cambial não esterilizada)? Ninguém, porque elas não existiam.

Mas agora essas ferramentas heterodoxas de política monetária são a norma nas economias mais avançadas -e mesmo em algumas economias de mercado emergente. E as recentes ações e indicações do Banco Central Europeu e do Banco do Japão reforçam a visão de que o futuro nos trará novas políticas heterodoxas.

Alguns alegaram que essas políticas monetárias heterodoxas -e a disparada concomitante nos balanços dos bancos centrais- representam uma forma de degradação da moeda oficial. O resultado, argumentavam esses observadores, seria inflação descontrolada (se não hiperinflação), uma alta acentuada nas taxas de juros de longo prazo, um colapso no valor do dólar dos EUA, uma disparada no preço do ouro e outras commodities, e a substituição das moedas oficiais degradadas por criptomoedas como o bitcoin.

Em lugar disso -e eis a quarta aberração-, a inflação continua baixa demais e está em queda nas economias avançadas, a despeito das políticas heterodoxas e da disparada nos balanços dos bancos centrais. O desafio para estes é tentar estimular a inflação, se não evitar diretamente a deflação. Ao mesmo tempo, as taxas de juros de longo prazo continuaram a cair nos últimos anos; o valor do dólar disparou; os preço do ouro e das commodities caíram acentuadamente; e o bitcoin foi a moeda de pior desempenho em 2014-2015.

O motivo para que a inflação ultrabaixa continue a ser problema é que o elo causal tradicional entre a oferta de dinheiro e os preços foi rompido. Um motivo para isso é que os bancos estão acumulando a base monetária adicional em forma de reservas excedentes, em lugar de emprestá-la (em termos econômicos, a velocidade do dinheiro despencou). Além disso, os níveis de desemprego continuam altos, o que confere pouco poder de barganha aos trabalhadores.

E continua a haver muita capacidade excedente nos mercados de produtos de grande número de países, com grandes hiatos de produto e baixo poder de formação de preços para as empresas (um problema de excesso de capacidade exacerbado pelo investimento excessivo da China).

E agora, depois de um imenso declínio nos preços das casas em países que passaram por um ciclo de expansão e contração, os preços do petróleo, energia e outras commodities desabaram. Podemos definir o fato como quinta anomalia -resultado da desaceleração na China, da disparada na oferta de energia e metais industriais (em consequência de sucessos na exploração e de investimento excessivo em capacidade adicional), o que debilita os preços das commodities.

O recente tumulto nos mercados deu início à deflação na bolha de ativos mundial causada pelo relaxamento quantitativo, ainda que a expansão das políticas monetárias heterodoxas possa alimentá-la por ainda mais algum tempo.

E a economia real da maioria das economias avançadas e emergentes está seriamente doente ainda que os mercados financeiros até recentemente estivessem galgando alturas inéditas, com apoio de medidas adicionais de relaxamento pelos bancos centrais. A questão é quanto tempo pode durar essa divergência entre o mundo das finanças e o mundo real.

De fato, essa divergência é um aspecto da anomalia final. O outro é que os mercados financeiros não reagiram muito, pelo menos até agora, aos crescentes riscos políticos, entre os quais os problemas do Oriente Médio, a crise de identidade europeia, as crescentes tensões na Ásia e o risco persistente de uma Rússia mais agressiva.

Uma vez mais, cabe questionar por quanto tempo pode ser sustentado esse estado de coisas -no qual os mercados não só ignoram a economia real mas desconsideram os riscos políticos.

Bem-vindo à nova anormalidade no crescimento, inflação, políticas monetárias e preços de ativos, e sinta-se em casa. Parece que viveremos aqui por um bom tempo.

Nouriel Roubini é presidente da Roubini Global Economics e professor de Economia na Escola Stern de Administração de Empresas, Universidade de Nova York.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: