Folha de S. Paulo


Jogos de computador saem do quarto e formam indústria de US$ 100 bilhões

Um rugido escapa do Commerzbank-Arena, um estádio de concreto que serve ao Eintracht Frankfurt, um time de futebol alemão; dezenas de jovens correm para chegar logo às bilheterias: eles estão atrasados para a disputa. Passam pelos fiscais quase sem parar e entram no estádio onde se unem aos milhares de torcedores, que gritam apoio aos seus ídolos enquanto um momento particularmente dramático do duelo é reprisado nos telões.

Mas não há futebol, nem qualquer esforço atlético, e tampouco um juiz, hoje no estádio. A disputa envolve habilidade no uso de um teclado e mouse, e o emprego ardiloso de armas como o "soco de morsa", "maldição do inverno" e "fogo líquido", para batalhas impiedosas entre alianças de heróis mágicos.

Para quem não sabe o que está acontecendo, o telão montado no que costuma ser o centro do gramado parece um borrão incompreensível, enquanto participantes lançam bolas de fogo uns contra os outros ou esmigalham gangues de saqueadores. Protegidos em cubículos ao nível do gramado, os jogadores das duas equipes usam fones de ouvido que isolam ruídos e digitam exaustivamente em seus computadores. Em uma plataforma isolada, ao lado, dois comentaristas empolgados falam sem parar sobre as jogadas, empregando um vocabulário que, embora nominalmente inglês, leva o ouvinte a perceber o que alguém que não entende o idioma sente ao ouvi-lo falar.

Diante deles, ocupando todo um lado das arquibancadas do estádio, de cima abaixo, há cerca de 10 mil espectadores, 95% dos quais homens, com idades do começo da adolescência aos 30 e poucos anos. Eles usam jeans, abrigos com capuzes e camisetas com nomes de equipes como se fossem uniformes, e entre eles se vê robôs, um batalhão de criaturas míticas e mais que algumas poucas moças vestidas sumariamente, brandindo cajados ou armas pontiagudas. Elas são aos cosplayers, uma tribo separada que se veste como personagens de fantasia.

Bem vindo ao torneio Dota 2, na ESL One. Se isso não quer dizer grande coisa para você, então explicar que o organizador da competição é a Electronic Sports League e que o jogo é uma variação de Defense of the Ancients tampouco vai ajudar muito. Para expressar em termos simples, duas equipes de cinco pessoas se enfrentam em um jogo de computador e milhares de espectadores, alguns dos quais pagaram mais de ¬ 200 por seus lugares, assistem. O valor total em prêmios é de US$ 298.135.

Os esportes eletrônicos (e-sports), ou torneios de jogos de computador, são um setor em ascensão. A depender de quem forneça a informação, o número de entusiastas dos e-sports é calculado entre os 90 milhões e os 135 milhões —definidos como pessoas que assistem e jogam regularmente, on-line ou não—, e há mais que o dobro desse número de espectadores casuais. De acordo com recente relatório da SuperData, o setor de e-sports neste ano vai gerar US$ 621 milhões de receita em todo o mundo.

Em parte, graças a torneios com altos prêmios, o Dota 2 —parte de um gênero conhecido como "arena de batalhas online para múltiplos jogadores", ou Moba— é um dos jogos mais prósperos dos e-sports. Embora os adeptos do Dota sejam considerados como especialmente apaixonados, ele nem de longe é o título mais popular. A distinção cabe a um primo próximo, o League of Legends. Enquanto o Dota é jogado por cerca de 11 milhões de pessoas ao mês, o LoL tem entre 70 milhões e 90 milhões de jogadores ao mês, e é imensamente popular nos polos de e-sports da Coreia do Sul e China.

Os dois jogos são frequentemente descritos pelos fãs e pelos jornalistas de videogames como dotados de "uma curva de aprendizado difícil", o que traduzido quer dizer "absurdamente complicados". O Dota 2, por exemplo, tem uma seleção de mais de 100 heróis com diferentes capacidades, baseadas em agilidade, força e inteligência. Em um ritual pré-jogo chamado Picks and Bans, que é acompanhado com quase tanta atenção quanto os jogos em si, as equipes podem eliminar cinco heróis do time oponente, o que mais ou menos equivaleria ao Liverpool ordenar que o Manchester United não escale Wayne Rooney nesta semana. A despeito de sua complexidade, Dota e LoL dominam os índices de audiência do Twitch, o mais popular canal de internet para os e-sports, adquirido pela Amazon em agosto do ano passado por US$ 970 milhões.

E-SPORTS NO MUNDO

Uma década atrás, a Coreia do Sul era a capital incontestável dos e-sports mundiais, com apego especial ao StarCraft, um jogo de estratégia militar e ficção científica. "O StarCraft foi um imenso sucesso e ajudou a atrair a atenção do público para os torneios de jogos", disse Joost van Dreunen, presidente-executivo da SuperData Research, uma companhia que analisa o mercado de jogos. Mas, acrescentou, "de lá para cá o mercado sul-coreano esfriou e outros, como a China e os Estados Unidos, emergiram como líderes".

Patrik Sättermon, vice-presidente de jogos da Fnatic, uma agência que administra equipes de e-sports e tem escritórios em Londres e Belgrado, concorda. "Os e-sports estão se tornando mundiais, sem fronteiras", ele disse. "Estão começando a se parecer com outras modalidades de entretenimento".

As oito equipes participantes demonstram até que ponto os e-sports se tornaram um fenômeno internacional. Os vencedores, Team Secret, contam com quatro europeus e o canadense Artour "Arteezy" Babaev (os jogadores de e-sports são conhecidos pelos apelidos. Os outros membros da equipe Secret são zai, s4, KuroKy e Puppey). Na final, eles derrotaram os Evil Geniuses, equipe que joga com a bandeira dos Estados Unidos mas cujo astro é Syed Sumail "SumaiL" Hassan, 16, paquistanês que agora mora em Illinois.

Além do dinheiro dos prêmios, os melhores jogadores recebem um salário básico dos donos da equipe, uma porcentagem das vendas de mercadorias, dinheiro de patrocinadores e pagamentos da Twitch e outras redes de mídia pela exibição de seus jogos ou sessões de treinamento online. As viagens para os grandes torneios também têm despesas pagas, da mesma forma que a hospedagem e a diversão. E as bebidas energéticas são ilimitadas - ainda que no mês passado um ex-jogador tenha admitido ir um passo além e tomado Adderall, um estimulante que reforça a concentração e é usado para tratar síndrome de deficiência de atenção, em um torneio de ESL na Polônia. A ESL diz que em breve começará a realizar exames antidoping aleatórios, o que gera uma comparação desagradável com o mundo do esporte profissional.

O grupo de talentos internacionais da ESL inclui ainda equipes chineses, russas e suecas, e dois times formados por jogadores de múltiplas nacionalidades. Ainda que o torneio tenha sido transmitido on-line para o mundo todo, o idioma de comunicação era o inglês. Comentários, análises e entrevistas acontecem em inglês, e entre os alemães, escandinavos, poloneses, russos, chineses, malásios e indonésios, havia milhares de torcedores ingleses. Só faltava uma grande equipe britânica —mas não existe uma.

Ainda que a maioria dos jogos seja realizado na internet, são os torneios ao vivo que rendem prestígio real, eventos nos quais os melhores dentre os melhores competem em igualdade de condições, com as mesmas velocidades de banda larga e os mesmos computadores. Eles são a ponta de lança de um fenômeno conhecido como "LAN party" (LAN quer dizer "rede de área local"), que existe desde que foram inventados jogos para múltiplos jogadores. Um dos eventos mais célebres é o DreamHack, que foi criado em 1994 no refeitório de uma escola da Suécia. O evento cresceu e se tornou um festival que abarca videogames, competições, arte digital, música ao vivo e exposição dos equipamentos mais recentes, bem como lançamentos de jogos; versões do evento são realizadas por toda a Europa, agora. O DreamHack tem um lado competitivo, mas também serve como uma celebração mais ampla da cultura dos videogames, com fãs participando de disputas para selecionar o melhor computador modificado e formando fila para conhecer as celebridades dos e-sports.

A grande questão para a ESL e seus concorrentes é como maximizar receitas da maneira que os esportes tradicionais fazem. "O entusiasta dos e-sports é extrema e igualmente valioso para as grandes marcas, os fornecedores de mídia digital e os fabricantes de hardware", afirmou o Newzoo, um grupo de pesquisa de marketing esportivo, em relatório publicado este ano. "Participantes e espectadores apresentam probabilidade maior que a da população geral de ter assinatura da Netflix ou Spotify, de ter renda mais alta, de ter emprego em período integral e de dispor de orçamento amplo para a compra dos equipamentos mais recentes". De fato, o setor como um todo —consoles de videogames, computadores para jogar, headsets, compras on-line de módulos de jogos, joysticks e volantes— movimenta cerca de US$ 100 bilhões ao ano. O desafio para os e-sports é ampliar a receita com transmissões, publicidade e mercadorias quando os fãs e os jogadores talvez estejam satisfeitos com as coisas como estão.

Sean Charles, vice-presidente de parcerias e relações com produtores da ESL, está otimista sobre o desenvolvimento do setor. "A analogia que uso é a do automobilismo", ele disse. "Nos primeiros anos, via-se as mesmas marcas associadas às equipes, mas com o crescimento no número de espectadores e com o interesse despertado, os anunciantes compreenderam ser possível atingir muito mais gente. Esse momento de 'primavera' é muito importante para qualquer forma de entretenimento, e é esse o momento que os e-sports vivem agora". Dez dias depois de nossa conversa, o grupo de mídia sueco Modern Times Group, que opera canais abertos de TV e canais de TV por assinatura em 100 países, adquiriu participação de 74% na controladora da ESL, a Turtle Enterprises, por US$ 87 milhões.

Os e-sports criam uma clara divisão geracional. Em cada torneio, é verdadeiramente desconcertante perceber como todos são jovens —não só os jogadores mas os fãs, técnicos, câmeras, dirigentes de equipes, pessoal de relações públicas, jornalistas especializados, analistas e comentaristas. Mas para qualquer pessoa que veja uma obsessão com os jogos de computador como pista expressa para a degeneração moral e física dos jovens do planeta, é igualmente impressionante quantas dessas pessoas são limpinhas, amistosas e ordeiras. Em lugar de gritar obscenidades para as outras equipes ou torcidas, os fãs de equipes rivais aplaudem as manobras empolgantes e perigosas dos dois lados. Em lugar de zombar das cosplayers como fariam os torcedores de futebol, todo mundo quer ser fotografado com elas. No ambiente muitas vezes febril de um estádio de futebol, uma atmosfera assim decorosa chega a ser enervante.

Pouco antes do clímax da ESL One, sou levado ao meio do campo, no espaço que separa as equipes dos fãs, por Austin "Capitalist" Walsh, 24, um norte-americano que comentará a final em companhia do famoso apresentador Toby "TobiWan" Dawson. Antes, ele me mostrou como funciona o Dota 2, enquanto a equipe Evil Geniuses vencia com facilidade sua semifinal.

Viramos de costas para o telão e encaramos a audiência. Com o torneio chegando ao fim, e os holofotes brilhando em meio ao crepúsculo, a empolgação e tensão começam a crescer e o estádio está lotando. Na plataforma diante da tela está o troféu da ESL One, à espera do vencedor. Quando os jogadores entram em campo, é a primeira coisa que veem.
Capitalist, esbelto, usando um terno, olha para cima e sorri. "Bacana, não é?"

-

135 milhões
Número estimado de entusiastas dos e-sports.

US$ 521 milhões
Receita estimada para o setor de e-sports este ano.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: