Folha de S. Paulo


Crise Grega: Continuar capaz de criar é sobreviver, diz grego

"Minha escola de balé estará aberta no ano que vem, papai?", perguntou Phaedra, minha filha de nove anos.

É difícil me concentrar em qualquer outra coisa que não na força esmagadora da crise. Se está em busca de consolo, basta olhar para o sul, onde fanáticos destroem sociedades e se erguem contra os sinais de culturas antigas.

Atravesse o Mediterrâneo e encontrará crianças que vivem com menos de US$ 1 ao dia. Ainda que comparações coloquem as coisas em perspectiva, não são soluções nem põem comida na mesa.

No começo da crise, fui assistir a um musical no sopé da Acrópole. Fiquei surpreso com a abundância de talento local evidente nos dois grupos do evento.

Um deles era a orquestra de cordas de Patras –cidade que não passa de 170 mil habitantes e sofreu pesadamente com a crise. O outro era o Coral Polifônico, também de Patras– 200 meninas e mulheres cantavam ao som de bandolins e de uma orquestra de bouzoukis [instrumento de cordas típico] formada por homens encanecidos.

Por anos, corais e orquestras foram bancados pelo governo municipal. Essas atividades culturais criam amizades e grupos de apoio, encorajam o altruísmo e a cooperação, aprofundam os elos sociais e recompensam os jovens por seu talento. Essa é a textura profunda de uma sociedade avançada, sua plena e colorida roupagem.

Não estou certo de que o coral e a orquestra continuarão a existir em 2016. Não sei se a escola de balé da minha filha reabrirá, com o fechamento dos bancos. Não estou certo de que os professores dela voltarão a encontrar trabalho. Uma lenta destruição da riqueza social está em curso e pode em breve atingir proporções de tsunami, uma grande onda destrutiva que arrastará os "adicionais" de uma sociedade avançada.

Mas mudemos de modo, para o otimismo, que para mim significa uma coisa: criatividade. A crise não passou despercebida na ilha de Creta –que está melhor que o restante da Grécia, por causa do turismo e das fortes exportações de produtos agrícolas.

Aqui, a velha tradição de dísticos rimados continua firme. Homens com competência poética são convidados a se apresentar em casamentos, batismos, funerais e inaugurações, muitas vezes cantando e tocando uma lira.

A globalização ajudou nesse esporte do passado. Os jovens cretenses enviam seus dísticos rimados aos amigos em mensagens de texto, com seus iPhones e Samsungs.

Em lugar de dizer alô, se cumprimentam nas ruas com versos. Para o verdadeiro poeta, os dísticos não são um hobby, mas uma obsessão, uma fonte de renda, uma guerra, uma prova de vida. Competições de versos são frequentes e aplausos determinam o vencedor.

A crise não escapou à atenção deles:

– Agora que você é pobre, tente não sofrer com suas feridas / As crises sempre passam –como sempre passa a vida

– "O que a Grécia tem de errado não fui eu que fiz" / Se você acha mesmo isso, é calote pro país

– Antes que seja tarde, vamos promover a união / Trabalhando todos juntos, garantimos a refeição

– Sem empregos e sem bancos, e a crise não se vai /Mar a dor só vai crescer com todo esse ai ai ai

– Entramos para o FMI para derrubar os ágios / Temo que essa triste história não vá ter um final mágico

Criatividade, e não o dedo em riste que caracterizava o meu amigo e ex-ministro das Finanças Yanis Varoufakis, é a verdadeira resistência. Um país que continue capaz de criar –mesmo em seus momentos mais sombrios– é um país de sobreviventes.

Em um mundo no qual as coisas estão desabando rapidamente, onde as pessoas não querem gastar um euro comprando um jornal e compram tabaco no mercado negro, todas as nossas aquisições do passado parecem tolas e excessivas.

Recorro a algo que não requer cartão de crédito ou banco: a leitura. Recentemente li sobre um incidente que, estranhamente, me reconfortou, ainda que tenha acontecido em um mundo periférico, gélido e vazio.

Viajando pela tundra ártica com seu guia inuit (esquimó), um médico foi apanhado por uma nevasca. No escuro e frio, distante das fronteiras que conhecia, bradou: "Estamos perdidos!" O guia inuit o olhou pensativamente e respondeu: "Não estamos perdidos. Estamos aqui".

E é isso, pequena Phaedra, minha adorável dançarina, minha menina maluca: estamos aqui.


NICK PAPANDREOU é formado em economia e ciência política em Yale, doutor em economia por Princeton e trabalhou no Banco Mundial. Romancista, roteirista e ensaísta, é autor de "Father Dancing", memórias de sua infância com o pai, o premiê Andreas Papandreou —que montou o sistema de bem-estar social na Grécia— e seu irmão George, ex-primeiro-ministro que conduziu o ajuste depois de descoberto o escândalo da dívida grega
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Tradução de PAULO MIGLIACCI


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