Folha de S. Paulo


Pobreza e recessão marcam filmes do Festival de Veneza

Em "Joe", um filme com estilo gótico sulista exibido sexta-feira no Festival de Veneza, Nicolas Cage interpreta uma versão mais barata do alcoólatra que encarnou em "Despedida em Las Vegas"; um filme alemão, exibido na mesma sessão, estuda a sombria questão da violência doméstica contra a mulher.

A pobreza e os efeitos do colapso econômico de 2008 sobre as pessoas e a sociedade, bem como na indústria do cinema, são os temas emergentes no Festival de Veneza este ano, aberto na quarta-feira e com encerramento marcado para 7 de setembro, quando será entregue o Leão de Ouro ao melhor filme.

Na quarta-feira, o diretor mexicano Alfonso Cuarón informou que "Gravity", uma grande produção de ficção científica sobre um desastre especial, exibida na abertura do festival, quase terminou cancelado devido aos efeitos da crise.

O diretor Paul Schrader, roteirista de "Taxi Driver", "Touro Indomável" e outros grandes sucessos dos anos 70 e 80, disse na sexta-feira que a situação econômica havia transformado o setor.

"O negócio do cinema está passando por uma mudança sistemática - não sistemática, sistêmica. Tudo que aprendemos no passado deixou de se aplicar", disse Schrader, diretor de "Canyons", um filme de baixo orçamento estrelado por Lindsay Lohan, em entrevista coletiva.

Em "Joe", dirigido por David Gordon Green e baseado no romance homônimo de Larry Brown, Cage interpreta um sulista rancoroso, adepto do bourbon, que faz amizade com um menino cuja família se comporta com violência.

A pobreza transparece em praticamente todas as cenas, da picape GMC escangalhada que Cage dirige para transportar os trabalhadores negros que emprega a fim de envenenar uma floresta e liberar a área, aos seus vizinhos, moradores de casebres precários e cujas refeições incluem carcaças de animais selvagens encontradas na beira da estrada.

"Fui cuidadoso ao selecionar o filme - eu não trabalhava há um ano quando encontrei esse roteiro", disse Cage em entrevista coletiva, na companhia de seus colegas de elenco e do diretor.

"Para mim era uma oportunidade de retornar a uma análise profunda de personagem, à construção de um personagem, e também de trabalhar com David", disse Cage, que conquistou o Oscar como melhor ator por sua interpretação de um roteirista alcoólatra de Hollywood que está bebendo até morrer, em "Despedida em Las Vegas" (1995).

Para aquele filme, Cage diz que aprendeu a retratar um bêbado se filmando em noitadas nas quais consumia alguns drinques. Desta vez, ele e seu colega Tye Sheridan, o adolescente para quem Joe se torna um pai substituto, simulavam a sensação girando até sentir tontura.

GATILHOS DE ABUSOS

"Die Frau des Polizisten" [a mulher do policial] mostra uma família jovem vivendo em uma região provinciana da Alemanha, cuja vida aparentemente tranquila decai à violência.

O diretor Philip Gröning, que em 2005 conquistou sucesso no circuito de arte com "O Grande Silêncio", sobre monges cartuxos em um mosteiro dos Alpes suíços, disse que embora o filme trate principalmente dos gatilhos emocionais e psicológicos do abuso, a economia também tem influência.

"O filme não trata só de violência doméstica, mas também do amor entre mãe e filha", disse Gröning. "Há também o aspecto da pobreza".

Uwe é um policial que trabalha fazendo rondas mas não tem grandes perspectivas de carreira. Sua mulher Christine e a filha Clara parecem cada vez mais confinadas à pequena casa em que a família vive.

"Nós removemos o teto e o telhado para que toda a casa pudesse ser iluminada", disse Gröning depois da exibição, acrescentando que diversos aspectos da vida familiar estavam sendo observados como que sob um microscópio.

Boa parte do diálogo foi improvisado, e as minúcias da vida cotidiana, o que inclui vermes no jardinzinho que a família improvisa, são acompanhadas de perto, mas há poucas cenas de violência.

Em lugar disso, Christine, que no começo do filme é mostrada pintando as unhas, começa a aparecer cada vez mais marcada e desarrumada; ela deixa de lado a higiene pessoal, até que Clara observa, com crueldade inocente: "Mamãe, você está fedendo".

O filme de três horas se divide em 59 capítulos, com uma mensagem silenciosa no começo de cada um. Elas "tomam tempo demais e interrompem a resposta emocional", afirmou o crítico Jay Weissberg, do jornal de cinema "Variety", em sua resenha.

Gröning defende o formato, que inclui imagens esporádicas de um velho que pode ou não ser a versão futura do policial.

"Esse é um dos motivos para que algumas audiências talvez se sintam um pouco incomodadas, no momento em que sentem que terão de decidir por si sós", ele afirmou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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