Folha de S. Paulo


O calçamento infame e as tartarugas praieiras

Candidato a prefeito só anda a pé durante a campanha. Mesmo assim, mais preocupado em cumprimentar um eleitor que quase sempre não está nem aí, jamais repara no estado das calçadas.

As do Rio não são padronizadas. Não há um modelo estabelecido pelo poder público, que cobra a responsabilidade de manutenção dos donos dos terrenos aos quais elas estão ligadas. O resultado, com a falta de fiscalização, é aquele que o cidadão sabe de cor: buracos, desníveis, pedras soltas, falta de acessibilidade.

Houve a tentativa de estabelecer um padrão levada a cabo parcialmente no projeto Rio Cidade, nos anos 1990. Hoje temos um pedaço de calçada de cimento, o seguinte de pedra portuguesa e outro, mais à frente, de placas de concreto.

A diversidade é tanta que, na ladeira da Misericórdia, perto da praça Quinze, sobrevive o calçamento conhecido como pé de moleque: enormes pedras de formatos irregulares. E não só ali: outros 22 pontos da cidade têm esse tipo de calçamento, em ruas da Saúde, Santa Tereza e Cosme Velho.

Danilo Verpa - 24.jan.2013/Folhapress
O primeiro QR Code do Brasil em pedras portuguesas, no Arpoador, zona sul do Rio
O primeiro QR Code do Brasil em pedras portuguesas, no Arpoador, zona sul do Rio

É patrimônio histórico. Assim como o famoso calçadão da praia de Copacabana, com o desenho das ondas em pedras portuguesas. Está bem conservado. Ao contrário do mosaico de letras musicais de Vila Isabel, que anda caindo aos pedaços.

No total, há cerca de 1,2 milhão de metros quadrados de calçamento em pedra portuguesa. Não há calceteiros competentes e suficientes para tanto espaço. Colocam-se as pedras de qualquer jeito, e tropece o pedestre.

Não à toa o ótimo romance "Fim", de Fernanda Torres, abre-se com a diatribe do personagem Álvaro (meu xará): "Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa".

TARTARUGAS DE ICARAÍ

A Olimpíada passou. A baía de Guanabara continua. Apesar do descuido das autoridades, o ecossistema, incrivelmente, consegue se preservar e se realimentar. A beleza das fotos de Custódio Coimbra no livro "Guanabara: Espelho do Rio" [FGV Editora, 242 páginas, R$ 100] é prova disso.

Ao lado dos registros de Coimbra feitos ao longo dos últimos 20 anos –trata-se de um craque que, não por acaso, é primo do rubro-negro Zico–, o texto da jornalista Cristina Chacel apresenta a história da diversidade na baía, que, para muitos cariocas, é desconhecida. Ou você sabia que se pode ver, diariamente, tartarugas marinhas passeando pela praia de Icaraí, em Niterói?

PIQUENIQUE NA GÁVEA

Cento e trinta imagens do fotógrafo amador Alberto de Sampaio estão na exposição "Lentes da Memória", aberta no Centro Cultural dos Correios. O material foi encontrado pela arquiteta e historiadora Adriana Martins Pereira na Sociedade Petropolitana de Fotografia.

Sampaio fotografou a abertura da avenida Central, a construção do Palácio Monroe, a derrubada do morro do Castelo e as transformações na orla do Rio.

E, muito antes de Instagram e Snapchat, registrou cenas íntimas: um piquenique na Gávea, com amigos engravatados e enchapelados, no fim do século 19. Advogado de profissão, era um artista: nota-se que estudava o ambiente, a incidência da luz, a posição dos "modelos".

DE BECO A BAIXO

Ali, nos últimos anos do século passado, funcionava o Beco da Cirrose, com sua fauna gravitando em torno do Tangará (melhor batida do Rio, um gengibre imbatível), do Carlitos (cuja especialidade era o jiló) e do Oxalá (comida baiana "quente" servida no frio do ar-condicionado). Os três ficavam na rua Álvaro Alvim –atrás da Cinelândia– e estão mortos.

Com preços populares, resiste na mesma rua a Spaghettilândia, onde começou, no distante ano de 1955, a treta entre Augusto de Campos e Ferreira Gullar. E resta ainda o Escadinha e sua dobradinha, na rua Francisco Serrador.

Hoje o chão de paralelepípedos da Álvaro Alvim, em frente ao teatro Rival, virou point. Já apelidado de Baixo Rivalzinho, funciona como aquecimento para a vizinha Lapa, com gente bebendo e dançando no meio da rua ao som de DJs a partir do início da noite. O auge é por volta das 22h, nos dias de semana. Às vezes aparece um sobrevivente dos tempos do beco que, diante de tantos selfies, desiste de voltar ao passado e entra no clima.

ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 53, é autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro" (Casarão do Verbo).


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