Folha de S. Paulo


O povo dono da praça da República e a atriz dona da cena

A praça da República é do povo. Tradicional ponto de partida de manifestações em Paris, o logradouro virou, a partir de janeiro de 2015, memorial para as vítimas dos atentados ao "Charlie Hebdo". O aspecto solene se amplificou após os ataques de novembro.

Esse clima grave, no entanto, dissipou-se nas últimas semanas. A ocupação Nuit Debout (noite em claro), que ali reúne ao anoitecer centenas de pessoas, operou a mudança de registro, do luto à luta.

ONGs, associações comunitárias, grupos estudantis reunidos inicialmente em torno da oposição ao projeto de lei que flexibiliza os direitos trabalhistas na França, resolveram assentar acampamento (literalmente) na República após a manifestação de 31 de março.

Ali, recobraram suas agendas próprias: auxílio a refugiados, denúncia da violência policial, direitos LGBT, apologia da anarquia, veganismo, combate à islamofobia.

Sem líderes declarados, o movimento se articula em grupos de trabalho (há cerca de 20, de educação a ciência, passando por logística, assembleia constituinte e poesia), que levam propostas à assembleia geral. Nesta, cada orador tem dois minutos de fala.

Dominique Faget - 14.abr.16/AFP
Pessoas na praça da República em Paris como parte do movimento Nuit Debout
Pessoas na praça da República em Paris como parte do movimento Nuit Debout

A imprensa francesa tem comparado o Nuit Debout aos indignados espanhóis, que em 2011 ocuparam a Puerta del Sol madrilenha sob a bandeira da democracia participativa. Apesar dos paralelos, há quem aposte que o primo francês vá se restringir à vitrine de utopias e valores, sem resultar na criação de uma legenda, como o Podemos.

Estabelecer um programa político concreto, comenta-se, seria institucionalizar, domar um elã popular, surgido nas franjas do sistema partidário –e em oposição a ele.

QUERMESSE CIDADÃ

No domingo (10), por volta das 21h30, desfilavam pelo microfone aberto da República tanto ideias tangíveis (convocação à greve geral, petição contra acordo da UE com a Turquia sobre a restrição do direito ao asilo) quanto proposições mais áridas ("qual o significado de ser europeu?").

Nas barracas de lona adjacentes à "ágora", militantes improvisavam TV e rádio Debout, ateliês de desenho e jardinagem, além de se revezarem no comando de cantina e biblioteca. Em algumas tendas, vendiam-se camisetas, broches, livros e CDs de grupos altermundialistas.

Para aqueles a quem o palavrório não basta, um quadro colocado na "recepção" sugeria ações: enviar diariamente missivas a François Hollande, telefonar a deputados e senadores para ocupar suas linhas, escrever Nuit Debout sobre notas de euro etc.

Não longe dali, grupos faziam e ouviam música em rodinhas, e uma trilha árabe pré-gravada animava uma pista de dança efêmera.

ADÈLE, A OUTRA

Mais celebrada atriz francesa de sua geração, Adèle Haenel, 27, é daquelas intérpretes que deixam adivinhar, através de cada papel, um relance de sua persona real.

Trata-se de uma aspereza que torna seu jogo fresco, sem afetação –seja interpretando uma prostituta do começo do século 20, seja na pele de uma pós-adolescente apocalíptica que busca um curso de sobrevivência para peitar o Juízo Final.

Compleição atlética, estilo de skatista, Adèle diz colecionar comentários sobre sua suposta falta de feminilidade. Não dá trela: "Cada um deve ir ao limite do que é capaz de pensar, sentir e amar".

Companheira da cineasta Céline Sciamma, ela ganhou projeção a partir do primeiro filme desta, "Lírios d'Água" (2007). Desde então, recebeu dois prêmios César (o equivalente francês do Oscar).

Atualmente em cartaz no circuito francês com "Les Ogres" (os ogros), Adèle protagoniza o novo longa dos irmãos Dardenne, "La Fille Inconnue" (a menina desconhecida), que deve estrear em maio, no Festival de Cannes. Ali, encarna uma médica que tenta descobrir a identidade de uma paciente a quem recusou atendimento.

PINTER

Nos palcos, Adèle estreou com "A Gaivota", de Tchékhov. Depois de três peças curtas do alemão Marius von Mayenburg, tenta achar sua vereda no teatro lacunar e enigmático do Nobel inglês Harold Pinter em "Old Times".

O texto narra a chegada de Anna (papel de Adèle), amiga de longa data de Kate, à casa desta e do marido. O homem diz não conhecer a visitante, mas será desmentido.

Para Pinter, o passado é tanto do que se lembra quanto aquilo que se imagina ou finge recordar. De onde se tira que Anna pode ser um fantasma (fala-se "en passant" em sua morte), um duplo de Kate, até uma projeção libertina do subconsciente do marido.

O espetáculo fica em cartaz até junho, no Théâtre de l'Atelier.

LUCAS NEVES, 31, é jornalista.


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