Folha de S. Paulo


Um epílogo para 'O Retrato': do arquivo de Cláudio de Oliveira

Conheci o jornalista Osvaldo Peralva (1918-92) em maio de 1991, durante o coquetel de posse do brasileiro Armando Rollemberg na presidência da Organização Internacional dos Jornalistas, cuja sede ficava em Praga. À época, Peralva era correspondente da Folha na cidade e eu, estudante de artes gráficas na Universidade Carlos.

Rollemberg, após me apresentar a Peralva, em tom de brincadeira alertava para minha então condição de militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro). "Cuidado, ele é do Partidão." Entrei no clima. "Então, o senhor é o 'liquidacionista'?" Rimos os três.

Acervo Pessoal
Cláudio de Oliveira (à esq.) com Osvaldo Peralva em Praga
Cláudio de Oliveira (à esq.) com Osvaldo Peralva em Praga

Após a publicação do relatório de Nikita Khruschov em fevereiro de 1956, no qual foram revelados crimes de Josef Stálin, Peralva deixou o PCB e passou a ser chamado de "liquidacionista" pelos comunistas. Lançou, em 1960, "O Retrato", um relato de sua passagem pelo Kominform, o birô de informações dos partidos comunistas de todo o mundo, substituto da Internacional Comunista, extinta em 1943.

No livro (recentemente reeditado pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha), Peralva faz críticas contundentes ao stalinismo e à subordinação da cúpula do PCB aos líderes soviéticos.

Por ironia da história, o Partidão terminou próximo do pensamento do "liquidacionista". Os seus líderes mais comprometidos com o stalinismo foram afastados em 1960. Luiz Carlos Prestes deixou o PCB em 1980 e, em 1985, o partido foi dos poucos PCs a dar apoio às reformas democratizantes de Mikhail Gorbatchov.

Na ocasião em que nos conhecemos, constatamos, Peralva e eu, que ambos torcíamos pelo êxito da "glasnost" e da perestroika e para que a União Soviética se transformasse em um país de socialismo democrático. Na semana seguinte, Peralva me convidou para um café no Hotel Europa, no centro de Praga, interessado em ouvir o meu relato sobre as manifestações que haviam levado à queda do regime comunista na Tchecoslováquia, em novembro de 1989.

A primeira passeata saíra da Faculdade de Ciências Naturais, em frente ao centro de língua tcheca para estrangeiros onde eu estudava. Era 17 de novembro, uma sexta-feira, e a temperatura caía abaixo de zero. Mas logo o clima esquentou, quando o representante da oficial União da Juventude Socialista sofreu uma sonora vaia. Já o representante da dissidente Coordenação dos Estudantes Universitários foi bastante aplaudido.

A passeata estava autorizada até o Teatro Nacional, porém os estudantes resolveram seguir até a praça de São Venceslau, sendo por isso reprimidos pela polícia.

Foi o rastilho de pólvora que detonou as manifestações seguintes, cujo gigantismo me fez lembrar dos comícios da campanha das Diretas no Brasil. Dali a duas semanas, o regime caiu, um governo de transição foi constituído e o dramaturgo Václav Havel assumiu a Presidência da República.

Em uma das manifestações, presenciei o discurso de Alexander Dub ek, o homem da Primavera de Praga, proibido de falar em público havia 20 anos. Em 1968, ele era o secretário-geral do PC quando o país foi invadido pelos tanques do Pacto de Varsóvia. Deposto em 1969, foi nomeado guarda-florestal em um bosque da Eslováquia. Com o fim do regime, filiou-se ao Partido Social-Democrata e foi eleito presidente da Assembleia Federal.

Peralva desconfiava que Dub ek fosse se candidatar à presidência tcheca e buscou entrevistá-lo. Combinamos que eu iria junto e o presentearia com uma caricatura. Porém, em agosto de 1991, Gorbatchov sofreu um golpe de Estado. A desastrada manobra dos stalinistas precipitou o fim da União Soviética e tumultuou o ambiente político da região.

Cláudio de Oliveira
Caricatura de Alexander Dub
ek feita por Cláudio de Oliveira
Caricatura de Alexander Dub ek feita por Cláudio de Oliveira

Em junho de 1992, concluí os estudos e voltei ao Brasil. Logo depois, Peralva também retornou ao país e, em outubro, morreu sem ter entrevistado Dub ek, que no mês seguinte também morreria, vítima de ferimentos de um acidente automobilístico ocorrido em setembro.

Em janeiro de 1993, a Tchecoslováquia dividiu-se em República Tcheca e República Eslovaca.

Durante os três anos em que vivi no país, não conheci estudante tcheco ou eslovaco que defendesse o regime retratado por Peralva.

CLÁUDIO DE OLIVEIRA, 52, é jornalista e cartunista do jornal "Agora", do Grupo Folha.


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