Folha de S. Paulo


À poesia o que é da prosa: os livros de Arnaldo Antunes e João Bandeira

RESUMO Dois poetas de tradição construtivista e visual, comumente associados à vanguarda concretista, lançam livros novos que mostram mudanças em relação a sua obra anterior. Incursões prosaicas, por exemplo, sugerem que ambos usam a plataforma do concretismo para anexar novos territórios a seus mundos poéticos.

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"Agora Aqui Ninguém Precisa de Si" e "Quem Quando Queira": os novos livros de Arnaldo Antunes e João Bandeira, respectivamente, trazem desde o título uma espécie de prosaísmo que contrasta com trabalhos precedentes.

É difícil ler os dois poetas sem pensar na sintonia que sempre mantiveram com uma poesia de extração construtivista, como a de João Cabral de Melo Neto, com os concretos e com toda sorte de criação visual –as caligrafias de Edgard Braga (no caso de Arnaldo Antunes) ou os poemas visuais de Joan Brossa (uma das referências de João Bandeira, que, nesse novo livro, dedica uma ode, também visual, ao poeta catalão).

De resto, a poesia parece sempre pedir que se identifique a correia de transmissão pela qual cada poeta procura expandir os limites da palavra –o que pressupõe consciência daquilo que veio antes e o diálogo com antecessores dentro de uma mesma tradição linguística.

Nisso, a poesia difere da prosa, em que a representação ficcional interpreta a realidade, esclarece suas possibilidades ocultas, que vão além (ou estão aquém) daquela coesão linguística que para o poeta é uma substância, como o são os materiais para o artista, os timbres e as notas para o compositor.

Não por acaso, Arnaldo Antunes e João Bandeira sempre passearam com bastante facilidade entre os registros da composição visual e da música, como se para eles a linguagem fosse aquela "estrutura do mundo exterior" de que falou Sartre em "Que É a Literatura?", ensaio que parte de uma controvertida tentativa de traçar uma fronteira talvez demasiado nítida entre os universos da poesia e da prosa.

Justamente porque essa fronteira não é tão nítida, encontramos com frequência uma prosa poética e uma poesia prosaica –sem que, no entanto, desapareça a sensação, difícil de definir, de que o poeta cria "coisas", acrescenta ao mundo conexões inesperadas entre seres, objetos, enquanto o ficcionista solicita ao mundo que enxergue algo que já estava nele, em estado de latência.

"Agora Aqui Ninguém Precisa de Si" [Companhia das Letras, 152 págs., R$ 34,90] e "Quem Quando Queira" [Cosac Naify, 104 págs., R$ 29,90] exploram exatamente esse trânsito entre uma apreensão poética que se transforma, ela mesma, em objeto e uma nomeação interpretativa, "prosaica", que, no caso de Arnaldo Antunes e João Bandeira, indica o tempo todo que já não é mais possível se entregar às propriedades estagnadas do que simplesmente é.

DNA

Nesse ponto, o tal diálogo com a vanguarda concreta (lugar-comum que se associou aos dois poetas) acaba sendo incorporado a esses livros menos como afirmação um tanto estéril de DNA poético do que como plataforma para anexar territórios.

Aliás, uma das partes que compunham o livro anterior de Arnaldo, "N.D.A." (Iluminuras, 2010), se intitulava precisamente "Nada de DNA" e reunia um conjunto de poemas anteriores, datados de 2006, que aludia ao "código genético" de um autor cujos poemas mais recentes, da primeira parte do volume, davam uma guinada narrativa que aparece de forma ainda mais pronunciada em "Agora Aqui Ninguém Precisa de Si".

Negar sem renegar seu DNA, tanto quanto optar por "nenhuma das alternativas" (como sugere o título daquele livro, tirado da sigla n.d.a., dos testes de múltipla escolha), talvez fosse uma indicação bem explícita dos caminhos buscados por Arnaldo no novo livro. Um poema como "(F)útil" –em que um "f" longilíneo, quase blasé, tem na base um "útil" grafado em letras compactas, sisudamente burocráticas– pertence àquele procedimento, associado à poesia concreta, de condensar sentidos antitéticos jogando com o aspecto material dos signos.

Mas, se esse poema parece estar em sintonia com os poemas de caráter crítico de Augusto de Campos (por exemplo, aquele de 1965 em que a palavra "luxo" se multiplica na página compondo o termo "lixo"), muitos poemas de "Agora Aqui Ninguém Precisa de Si" vão na direção contrária, apontam para uma meditação angustiada, mais lírica, do sujeito que cavouca lugar e significação entre as alternativas da futilidade e do utilitarismo.

O poema que começa pelos versos "eu tenho uma coleção de esquecimentos/ e apenas duas mãos pra ver o mundo" remete de imediato a Drummond não apenas pelo óbvio paralelo com "Sentimento do Mundo" ("Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo") mas também pelo rebaixamento cósmico-cômico do final, tão característico do poeta mineiro: "queria estar a sós comigo mesmo/ e ter a eternidade toda em torno/ desfalecer no fogo desse forno/ até me desfazer como um torresmo".

O poema que começa pela estrofe "pedra de pedra de pedra/ o que a faz tão concreta/ senão a falta de regra/ de sua forma assimétrica/ incapaz de linha reta?" é a "pedra no meio do caminho" de Arnaldo Antunes, que em "Extrair" emula os versos em eco de Gregório de Matos, não por uma espécie de beletrismo experimental, mas para assimilar a agudeza crítica do poeta baiano e escapar da cadência repetitiva que traga o cotidiano, "do ato regular que se dissipa em método, todo/ hábito que habito, repito,/ da meta inalcançável que me fita, cripta/ do incontável número dos dias vividos, idos".

O título "Agora Aqui Ninguém Precisa de Si" não corresponde a nenhum poema específico, parece obedecer a uma batida musical que sempre esteve presente no trabalho de Arnaldo como compositor, mas aqui se investe de uma relação mais dramática seja com sua cidade ("Não Posso Dormir em São Paulo"), seja com o corpo, esse "asilo de carne e pele", "casulo" que anseia pelo inevitável "Nocaute" (título do poema).

Como em "N.D.A.", poemas reflexivos –como o belíssimo "Sonho", do qual desperta um "Sísifo/ dissidente/ do círculo/ eternamente/ incompleto"– se alternam com poemas visuais e recortes fotográficos da realidade (fachadas, outdoors, o espelho retrovisor de um carro, uma notícia de jornal tornada "ready-made"), mas também uma seção de "ready- mades" verbais, "prosinhas" que estão entre o aforismo e o dito popular, dando feição narrativa à oralidade de Arnaldo Antunes.

Encontramos essa mesma alternância em "Quem Quando Queira", de João Bandeira, que igualmente opera um desvio em relação a seu livro anterior, "Rente" (Ateliê, 1997), de nítida filiação concretista. Dividido em cinco partes, a última delas dispõe uma série de recortes fotográficos de outdoors ou cartazes com letras que, isoladas, formam palavras como "sul", "sem" e "suor".

CORROSÃO

Lidos/vistos em sequência, eles compõem imagens da corrosão pelo tempo e de remissão a uma topografia brutalista –o país ao sul, com sua escassez, o sul do corpo, com sua transpiração. Lidas/vistas no conjunto do livro, essas imagens cifram seu DNA de poeta visual, a exemplo do que ocorria com Arnaldo Antunes, a quem Bandeira dedica, na quarta seção (com retratos-homenagens a amigos e artistas), um "Alfabeto Retificado para Arnaldo", poema-objeto em que as letras são formadas por quinquilharias de ferro velho desentranhadas, por exemplo, de um poema como "Cápsula Caroço", de "N.D.A.".

Entretanto, essas imagens de corrosão, observa José Miguel Wisnik no texto de orelha do livro, apontam também para a "corrosão das linguagens e dos projetos poéticos que já foram heroicos em outros tempos". Daí a mudança que se observa (em relação a "Rente") nas primeiras três seções de "Quem Quando Queira", cujo título sai de um poema que, sem nomear a cidade, justapõe flashes da californiana San Francisco, com seus "novos hippies e yuppies", onde os terremotos podem ser também financeiros e as "passeatas pacíficas reivindicam diariamente o impossível".

Essa atmosfera contracultural se conecta ao universo da comunicação de massa –na celebração da diva Brigitte Bardot, "transformada em harpia/ depois do advento/ da fotografia"– e da confusão de registros da alta e da baixa cultura, como no poema "De Sorte" (ponto alto do livro), que amalgama predições astrológicas e meteorológicas, conselhos de manuais de auto-ajuda ou de guias para o sucesso financeiro e citações de autores como Mallarmé, Fernando Pessoa e Walter Benjamin, nas quais o risco e o imprevisto dão resposta a messianismos rebaixados.

Em João Bandeira, a utopia poética de congelar o instante num artefato que materializa a corrupção do existente, sem se entregar a ele, cede lugar a um preenchimento angustiado do vazio que restou após o triunfalismo vanguardista e a ressaca modernizadora.

Podem ser anotações prosaicas sobre a modorra de uma ilha acossada pelo turismo predatório, ou a descrição igualmente prosaica do despertar noturno da mulher enferma, ou ainda homenagens como aquelas dedicadas ao artista plástico Waltercio Caldas e ao crítico Lorenzo Mammì –em que a frase "como se" é repetida como um mantra para tentar compreender uma generosidade cada vez mais rara: "como se/ para ser seu amigo/ bastasse estar vivo/(...) como se/ ideias próprias/ só se completassem/ quando nossas".

"Quem Quando Queira" lança mão de procedimentos experimentais (elipse, colagem, poesia visual) para afirmar, num poema-fluxo que retoma o motivo bíblico da criação do mundo pelo verbo divino, que "desde o fim a poesia é o meio" –que a poesia, enfim, pode também ser um modo de fazer a mediação entre a palavra tornada coisa e o mundo que esmaga livros, linguagens e coisas.

MANUEL DA COSTA PINTO, 49, é jornalista e crítico literário, colunista da revista "sãopaulo" e editor do "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", autor de "Paisagens Interiores e Outros Ensaios" (B4).


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