Folha de S. Paulo


Os charutos de Milos Forman

Nova York, 1997

Depois de uma década como fotojornalista, resolvi me voltar para o cinema. Estudei, dirigi curtas-metragens e, em 1994, consegui uma bolsa para fazer o mestrado em direção e roteiro cinematográfico na Universidade Columbia, em Nova York. Escolhi Columbia porque o catálogo anunciava que o diretor da escola era ninguém menos que Milos Forman, o grande diretor tcheco, emigrado para os EUA, e responsável por filmes como "Um Estranho no Ninho" (1975), ganhador de cinco Oscar, entre tantos outros longas consagrados.

Um dos textos que escrevi como material para ser aceito na pós-graduação foi uma comparação entre duas adaptações do romance epistolar de Choderlos de Laclos: "Valmont" (1989), de Forman, com roteiro em parceria com Jean-Claude Carrière, e "Ligações Perigosas" (1988), de Stephen Frears, adaptado da peça de Christopher Hampton. Minha versão favorita era, claro, a de Milos, a meu ver muito mais fiel à época em que se insere o drama e muito menos afeita a julgamentos calcados na moralidade corrente.

Em 1996 terminei, durante o curso, um curta-metragem que chamou a atenção nos EUA. No mercado do sangue novo, saindo das universidades, ele ganhou o prêmio de melhor filme da Columbia, circulou por festivais e me garantiu um agente em Los Angeles e, no ano seguinte, um prêmio de desenvolvimento e a tutoria de Milos para execução de meu filme de conclusão do mestrado.

O novo filme tinha um tema espinhoso para os americanos, lidava com o que se denominou de "fragging", termo derivado de "fragmentation grenade", e que era usado para indicar o assassinato, no Vietnã, de um oficial por seus comandados, pois quase sempre essas mortes eram perpetradas com uso de granadas (não deixam marcas como as balas).

Acervo pessoal
Carta da Universidade Columbia confirmando que Dantas foi orientado por Milos Forman
Carta da Universidade Columbia confirmando que Dantas foi orientado por Milos Forman

O primeiro contato com Milos foi por telefone, em 1997. Ele leu o roteiro que eu havia escrito e pediu que nos reuníssemos em seu apartamento, em Manhattan. O endereço impressionava, de frente para o Central Park South. Subi ansioso para extrair dele o máximo que pudesse. Milos não dava mais aulas, era o diretor emérito, e essa era a primeira vez que ele ia orientar dois alunos. Entrei no elevador lembrando o que diziam nos corredores da universidade: "ele é um diretor pay-or-play"; "ele só se anexa a projetos com valores altos e recebe cachê caso entre em produção ou não"; "ele está na lista de diretores A". Mas isso para mim era mais a questão cultural do mercado americano. Eu admirava o fato de Milos ter uma integridade nos seus filmes, ter sempre um sentido libertário.

Ele abriu a porta, eu disse "oi", entrei, me sentei, afundei no sofá, e de longe queria ver se conseguia avistar o Central Park na grande janela da sala que tinha as cortinas fechadas. Uma TV enorme decorava o ambiente. Tomamos café, ele acendeu um charuto. Eu, que fumava naquela época, acendi um cigarro para acompanhar.

Escutei comentários sobre o roteiro, como deveríamos trocar versões, as revisões necessárias. Ele me perguntou se já tinha data para filmagem, disse que estava estudando, e o comentário foi: "Precisa ser real. Esses personagens precisam pensar, reagir e agir como as pessoas que passaram por estas experiências". Comentei que teria ajuda de Carlin Glynn, que conhecia grupos de ex-combatentes atores, e que poderia começar a pesquisa de elenco por aí. "Sim, você precisa conhecer essas pessoas", ele disse.

Nos encontramos mais algumas vezes ao vivo e trocamos anotações no roteiro durante alguns meses. Nesse período ele estava imerso na produção de "O Mundo de Andy", o filme sobre o comediante autodestrutivo Andy Kaufman.

A filmagem transcorreu de forma tranquila e a montagem foi realizada na Stolen Car, uma casa de pós-produção onde depois eu viria a trabalhar. A Stolen Car tomava um andar na rua 45, entre a Quinta e Sexta avenidas. Quando anunciei a Tom Donahue, montador, que Milos viria ver o corte, houve comoção geral e levantou-se uma questão –é completamente proibido fumar em qualquer ilha de edição, mas no caso dele, todos concordaram, se Milos Forman quisesse acender seu charuto para refletir sobre os comentários a serem feitos, os computadores usados em montagem não linear –então muito caros– teriam que aguentar.

Milos chegou carregando uma bolsa tipo pochete, todos se entreolharam –quantos charutos cabem ali? Depois de 50 minutos de excelentes comentários, ele disse que tinha um compromisso, pois estava em pré-produção e foi embora sem acender um charuto sequer. O pessoal da edição agradeceu, e nós ficamos até um pouco desanimados; afinal, ter permissão de fumar numa ilha de edição não é uma coisa qualquer.

LUIS DANTAS, 54, é professor doutor do departamento de cinema da ECA-USP e diretor de "Se Deus Vier que Venha Armado", em cartaz nos cinemas.


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