Folha de S. Paulo


ponto crítico

O elogio do improviso em "Morte Acidental de Um Anarquista"

Conversar com o público antes do início de cada apresentação de peça sua era um hábito do ator, diretor e dramaturgo italiano Dario Fo (1954-2013). Ele discorria sobre o enredo e criava cumplicidade com seus espectadores, já provocando as primeiras risadas. Em seu livro "Manual Mínimo do Ator", Fo descreveu esse elo prévio com a plateia como o "método de sondagem, aproximação e ligação".

Procedimento similar é utilizado na montagem de "Morte Acidental de Um Anarquista", em cartaz no teatro Porto Seguro até 10/12.

Lenise Pinheiro - 17.set.2015/Folhapress
Os atores Henrique Stroeter (esq.), Dan Stulbach (de pé) e Riba Carlovich (dir) em cena de
Os atores Henrique Stroeter (esq.), Dan Stulbach (de pé) e Riba Carlovich (dir) em cena de "Morte Acidental de Um Anarquista"

Após acolher os espectadores na entrada da sala de espetáculos com música e sorriso no rosto, a trupe sobe ao palco cantando que "os anarquistas estão chegando". Os atores Dan Stulbach e Henrique Stroeter expõem brevemente o contexto histórico da peça, escrita por Fo em 1970 como resposta satírica às investigações sobre morte de Giuseppe Pinelli no ano anterior. Acusado de participar de um atentado à bomba em um banco de Milão, o suspeito teria se jogado –ou sido arremessado– do quarto andar do departamento de polícia.

A proposta cênica do diretor Hugo Coelho prioriza o improviso e o jogo teatral entre os atores. O espetáculo não conta, por exemplo, com um desenho de luz variável, sendo a iluminação do palco fixa e constante durante quase toda a apresentação. Deixa, com isso, que os atores brilhem mais do que a linguagem da encenação.

No papel do louco detido pela 12ª vez por assumir a identidade de outras pessoas, Stulbach conduz as cenas como se fosse o verdadeiro diretor. A partir de informações colhidas com a plateia durante o mencionado prólogo, relaciona-se com o resto do elenco, propondo interações com o público.

Como ator, empolga pelas diferentes técnicas de modulação de voz e expressão corporal empregadas para cada persona que o louco incorpora, criando um registro cômico esquizofrênico, que remete a estilos tão variados como os de Buster Keaton, Peppino de Filippo ou Ronald Golias.

Os textos de Dario Fo eram escritos a partir de experimentos cênicos, em que testava suas proposições dramatúrgicas e criava um "canovaccio", espécie de roteiro de ações típico da "commedia dell'arte". Por vezes, a montagem de Hugo Coelho assemelha-se a um desses ensaios, em que possibilidades cômicas ainda estão sendo testadas pelos atores. Enquanto Fernando Sampaio (comissário) parece pesquisar o efeito das gags físicas, com tapas, tombos e caretas à la Trapalhões, Riba Carlovich (secretário de segurança) e Stroeter (delegado) trabalham as pausas irônicas, os olhares e os gestos mais comedidos.

Nesse pandemônio de múltiplos códigos, a atriz que perde a voz logo em sua primeira cena nem chega a causar estranhamento no espectador, dado o notório caráter de experimentação no palco.

A sonoplastia de Rodrigo Geribello bebe na mesma fonte de improvisação. Abusando de um esdrúxulo repertório de imitações vocais, como campainha de teatro, vibração de celulares e alarmes de carro, o pianista executa ao vivo, de um canto do proscênio, os efeitos sonoros. Algumas intervenções espontâneas, contudo, embora em sintonia com o elenco, mais atrapalham do que ajudam.

A figura do louco rejeitado pela sociedade, mas que tem acesso a uma verdade oculta ao cidadão sensato, é recorrente na dramaturgia politizada de Fo, simpática ao uso do passado como metáfora para o presente. A maior virtude do espetáculo, porém, é valorizar outro vetor também caro ao italiano: a poética da cultura popular.

Assim, em vez de um texto poluído por referências a escândalos contemporâneos, temos um espetáculo singelo, assentado nas bases da comédia rasteira, mas que, exatamente por isso, funciona melhor do que o anacrônico teatro político panfletário.

MARCIO AQUILES, 36, é coordenador de projetos internacionais da SP Escola de Teatro, crítico teatral e autor de "Tipologias Ficcionais e Linguísticas" (Giostri).


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