Folha de S. Paulo


Em Caracas falta tudo, mas a gasolina custa menos que fraldas

A atendente avisou: a batata frita está em falta, e o Big Mac vem sem queijo. O McDonald's também não tinha torta de maçã nem de banana. O banheiro estava sem papel higiênico e sabão. Tudo bem, pensei. Já não me incomodo com essas coisas, após mais de ano vivendo na Venezuela.

Almocei sem estresse, curtindo uma porção de mandioca frita em palitos que vinha na mesma embalagem vermelha da batata e um hambúrguer com pão visivelmente comprado às pressas em alguma padaria –isso a atendente não havia contado.

O mesmo ocorre em restaurantes finos de Caracas. O cardápio costuma ser apenas um vago parâmetro daquilo que talvez, com sorte, esteja disponível naquele dia e naquela hora. Quer repetir aquela salada grega da semana passada? Desculpe, senhor, não encontramos os ingredientes. Traz uma água mineral, por favor? Lamento, mas, como o senhor imagina, estamos com dificuldade de abastecimento.

Restaurantes, hotéis e padarias pagam gente só para varrer a cidade em busca de itens escassos, como café e leite. Muitas vezes, só se consegue produtos no mercado negro, onde negócios fervilham fora da economia oficial.

Bairros populares vivem cheios de camelôs e barraquinhas que revendem mercadoria adquirida a "preço justo" no inferno dos mercados estatais, onde filas são horrendas. Um pacote de fraldas que custa menos de 200 bolívares (US$ 0,30 no câmbio paralelo) nas lojas do governo, pode ser encontrado na rua dez vezes mais caro. O mesmo vale para remédios, peças de carro e material informático.

DISTORÇÕES

Consumir é uma experiência tão surreal na Venezuela que encher o tanque de um carro médio custa 4 bolívares. Isso mesmo: a gasolina, subsidiada, é 50 vezes mais barata que um pacote de fraldas.

É esse de tipo de distorção que alimenta o tentacular contrabando nas fronteiras, raiz da atual crise diplomática com a Colômbia. Difícil impedir um cidadão venezuelano de encher o tanque de seu carro para esvaziá-lo no país vizinho, com lucro de quase 1.000%. No sentido inverso, colombianos cruzavam a fronteira em massa –até o recente fechamento– para adquirir alimentos e produtos de higiene a "preço justo".

O controle de câmbio também é um convite à ilegalidade. Um dólar na taxa oficial vale 6,30 bolívares. No paralelo, mais de 700. O melhor negócio do planeta é obter divisas do governo e vendê-las a doleiros.

PARA O BEM DO POVO

O governo diz que os controles são indispensáveis para assegurar o acesso dos mais humildes ao consumo. A propaganda chavista questiona: se a Colômbia é tão mais legal, por que milhões de colombianos continuam preferindo viver na Venezuela?

O problema é que a crise econômica, causada pelo próprio governo, está tornando o sistema inviável. Há controles de mais e produção de menos. Isso não era problema quando o petróleo trazia uma enxurrada de dólares com os quais o governo importava aos montes. Mas o preço do barril despencou em 2014. Após anos de gastança e roubo, não sobrou nada no caixa. Fora do comércio estatal, a inflação explode. Uma calça jeans básica custa 10 mil bolívares.

VIAJAR SEM PASSAGEM

Uma de minhas experiências mais bizarras aconteceu numa manhã recente. A tensão crescia na fronteira com a Colômbia, e eu precisava chegar lá com urgência. Nenhuma agência de viagens conseguia achar passagem, mas uma delas me deu o telefone de um contato no aeroporto que "resolve tudo". Liguei na hora. O sujeito prometeu me colocar no voo seguinte mediante pagamento em espécie do valor da passagem mais comissão pela "ajuda". Entreguei-lhe o dinheiro em mãos e, instantes depois, lá estava eu dentro do voo no qual supostamente não havia lugar. Embarquei sem passagem. Ainda não sei como farei para justificar esse gasto na prestação de contas.

Fiquei chocado quando um amigo explicou que algum funcionário corrupto provavelmente cancelou a passagem de outro passageiro para me colocar no voo. "Sem esse esquema, você nunca teria conseguido viajar de última hora."

SAMY ADGHIRNI, 36, é correspondente da Folha em Caracas.


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