Folha de S. Paulo


Bem longe de casa: sírios encontram refúgio improvável no Brasil

O Brasil não ocupava posição importante na vida de Humam Debas antes da guerra na Síria. Como gerente de uma empresa na cidade de Hama, dotado de uma renda confortável, ele havia pensado em levar sua mulher em uma viagem de férias ao Rio de Janeiro. Mas tudo que ele realmente sabia sobre o distante Brasil é que as praias eram bonitas e a seleção de futebol excelente. Debas presumia que todo mundo falasse inglês, por o país ficar tão perto dos Estados Unidos.

Hoje, porém, ele está fazendo sua primeira aula de português, em São Paulo, onde chegou com a família para tentar recomeçar a vida como refugiado, depois que o conflito em seu país os arrancou de casa e os arremessou para o outro lado do mundo, devido à relutância de nações mais próximas a recebê-los.

A transferência de um bairro suburbano habitado por outros muçulmanos a uma superpovoada megalópole no maior país católico do planeta foi inevitavelmente traumática, mas Debas está grato por alguém tê-lo acolhido.

"Nenhum outro país concedia vistos aos sírios", ele recordou, enquanto bebíamos café sírio em um apartamento de um quarto que ele divide com a mulher, o filho de dois anos e um cunhado, no bairro do Cambuci. "Poderíamos ter tentado chegar ilegalmente à Europa de barco, mas seria perigoso demais para a minha família. Por isso, o Brasil era a única escolha segura."

Desde 2013, quando o Brasil abriu suas portas, 1.740 refugiados sírios foram registrados no país –muito mais do que nos Estados Unidos.

A maioria se concentra nas regiões próximas às principais mesquitas de São Paulo, nos bairros do Brás e Cambuci. Debas (cujo nome foi alterado nesta reportagem porque ele se preocupa com familiares ainda vivendo na Síria) vive nesse último bairro há quatro meses.

"Oh, meu Deus, foi um choque quando cheguei", ele diz em inglês quase impecável. O idioma e o dinheiro vêm sendo as maiores dificuldades.

Ele e a mulher, Lara, formados por universidades prestigiosas em Damasco, trouxeram cerca de US$ 4,5 mil, mas a maior parte desse dinheiro foi consumida por diárias de hotel nos dois primeiros meses de estadia. A prefeitura da cidade ofereceu abrigo gratuito, mas Debas não queria que sua mulher e filho dividissem acomodações com moradores de rua e viciados em crack. Encontrar um apartamento foi difícil porque a maioria dos senhorios brasileiros requer um fiador proprietário de imóvel.

O Brasil tem 15 milhões de habitantes de ascendência árabe, entre os quais três milhões com proveniência síria, mas Debas não encontrou muita gente disposta a ajudar a mais recente onda de imigrantes. "Há libaneses que vivem aqui há gerações, mas infelizmente a maioria deles não oferece ajuda. Deve haver boas pessoas aqui, mas ainda não as encontramos."

Debas ganha algum dinheiro ensinando inglês durante sete horas por semana, mas isso não basta para pagar o aluguel de R$ 750, e por isso eles estão desesperados para encontrar fonte de renda mais estável. A família está pensando em abrir uma empresa de importação ou um restaurante, ainda que a fonte óbvia de capital inicial ou garantia de empréstimos já não exista: "Não podemos vender nossa casa na Síria porque ela foi bombardeada", diz Debas.

A vida da família foi dilacerada em 1º de agosto de 2012, quando sua casa em Hama foi apanhada em um fogo cruzado entre os rebeldes e soldados do governo. "O primeiro ataque começou sem aviso às duas da manhã. As janelas foram quebradas e as paredes perfuradas por balas", recorda Lara. "Tentamos nos proteger nos deitando no chão do corredor. Eu estava grávida. Foi o pior dia da minha vida."

Muitos amigos e vizinhos do casal foram mortos no ataque. Na tarde seguinte, soldados ordenaram que todos deixassem a área. Nos meses e anos que se seguiram, eles tentaram viver em outros lugares da Síria, mas era perigoso demais, e depois se transferiram à Jordânia, onde não foram bem recebidos. Por isso, em setembro do ano passado, eles decidiram se mudar para o Brasil.

"No começo, pensamos em voltar para nossa casa, e que nossa situação como refugiados seria temporária. Imaginávamos que a situação duraria só uns dois meses. Mas logo eram quatro meses, um ano. Agora, voltar à Síria parece impossível. Perdi a esperança disso. A guerra vai continuar", disse Lara.

"Estamos planejando criar vida nova aqui no Brasil", diz o marido. "Recomendei o país à minha família e amigos na Síria, Jordânia e Egito. O Brasil é melhor que outros países. É seguro e se pode construir uma vida nova aqui, ainda que o custo de vida seja alto... Nenhum outro país nos quer, nem mesmo a Jordânia, para onde costumávamos viajar para fazer piqueniques. A guerra destrói tudo. Destrói a cultura, edificações e pessoas. Se você não passou por isso, não será capaz de imaginar".

Outros refugiados –quase todos com nível elevado de educação e capacitação profissional– contam sobre decisões igualmente difíceis. Até 2013, Hassan Salman, 36, programador de computadores, morava em Yarmouk, o bairro palestino de Damasco, seu lar por toda uma vida. "Era maravilhoso", ele conta, "até que os caças Mig atacaram". O governo decidiu punir a comunidade por oferecer refúgio aos rebeldes. Foguetes destruíram uma mesquita e uma escola.

"Eu estava a um quilômetro de lá. As explosões fizeram um barulho terrível e mataram muita gente, incluindo crianças e velhos", conta Salman. "Depois a polícia invadiu Yarmouk e começou a deter pessoas nas ruas. Muitos dos meus amigos foram mortos por eles, por terem ajudado refugiados. Eu também tinha ajudado. Isso bastava para que eu também fosse morto. Por isso fugi".

Hassan levou a família ao Líbano. Tiveram de ir de táxi, porque seu carro havia sido destruído em um ataque com foguetes. Por mais de um ano, eles viveram no campo de refugiados de Baddawi, em Trípoli, mas a vida era difícil. Havia pouco trabalho e, quando seus vistos expiraram, eles temiam ser devolvidos à Síria, e por isso começaram a buscar outros possíveis refúgios. Foi uma experiência deprimente e muito dispendiosa.

"Tentei as embaixadas da Alemanha e França. Eles embolsaram meu dinheiro –US$ 200 por pessoa, para mim, minha mulher, meus dois filhos e minha mãe–, e tive de pagar US$ 500 para traduzir meus documentos, mas depois se recusaram a nos receber. Agentes libaneses prometeram que nos encontrariam lugar na Europa. Paguei US$ 3 mil, mas eles só roubaram meu dinheiro", ele recorda.

Em seguida o Brasil anunciou que estava abrindo suas portas, Salman hesitou, inicialmente. Era muito longe, e ele não conhecia muita coisa sobre o país. Mas porque seu visto já estava estourado em seis meses, era o único jeito de evitar a repatriação.

"Não havia nada mais que eu pudesse fazer. Era minha última chance", ele recorda. "Por isso fui ao consulado brasileiro. Eles foram muito gentis. Foi muito diferente das outras embaixadas".

Deixando sua família para trás até se assentar, ele chegou a São Paulo em 5 de outubro de 2014. "Agradeci a Deus por ter saído do Líbano", recorda Hassan. "Mas tudo parecia muito estranho. Passei minha primeira noite no país dormindo em um colchão no chão de uma fábrica, e ficava me perguntando o que estou fazendo aqui."

Os funcionários do consulado haviam explicado que o Brasil oferecia visto de residência e documentação de viagem, mas que não havia apoio do governo para que ele encontrasse moradia ou trabalho, Mesquitas e a organização assistencial católica Caritas ofereciam ajuda para estudar o novo idioma e obter documentação, mas os refugiados em geral teriam de se virar sozinhos. Seu dinheiro já está acabando. Ainda que ele consiga trabalhar um pouco online, também tem de vender roupas na rua para cobrir o aluguel de US$ 600 ao mês que ele e três amigos pagam por um apartamento no Brás, uma área de alta criminalidade. Três amigos foram assaltados quando o visitaram, recentemente.

Por isso, a esperança de Salman é a de se mudar para a Alemanha, Suécia ou outro país. "O Brasil é um país maravilhoso se você tem emprego. As pessoas nos tratam como se fôssemos brasileiros. Ninguém faz perguntas sobre religião. Mas o problema é dinheiro. A vida aqui é cara", ele diz. "A Europa seria melhor".

O Brasil ganhou prestígio por sua ajuda durante o pior desastre mundial quanto a refugiados. O país aceitou mais refugiados sírios do que qualquer outra nação latino-americana, de acordo com o alto comissariado da ONU para refugiados (UNHCR), e mais 6,3 mil vistos foram concedidos. Mas Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, diz que essa assistência humanitária precisa ser colocada no contexto. No total, o Brasil recebeu apenas oito mil refugiados até agora, ante um quarto de milhão na Alemanha e 200 mil nos Estados Unidos.

"A despeito de seu tamanho, o Brasil acolhe poucos refugiados", ele disse. "Não é um país que receba muitos estrangeiros, principalmente porque a burocracia dificulta as coisas. Apenas 0,3% da população não nasceu no Brasil, e essa proporção está em declínio. Compare com a Alemanha, Inglaterra, França, onde uma em cada dez pessoas nasceu no exterior".

Culturalmente aberto mas burocraticamente fechado, e muito caro, o Brasil não é um país que permita fácil assimilação. Uma das pessoas que parecem ter conseguido se integrar é Dana al-Balkhi, que estava entre os primeiros refugiados sírios a chegar ao Brasil.

Três anos antes de chegar, em dezembro de 2013, a jovem estudante de literatura inglesa antecipava fazer uma carreira brilhante, mas Deraa, sua cidade natal –e foco de muitos dos primeiros protestos contra o regime sírio– logo se tornou um campo de batalha. Por dois anos, ela ouviu disparos de foguetes por sobre sua casa. Quando membros de sua família começaram a desaparecer, o pai enviou Balkhi e sua irmã para fora do país. Elas foram ao Líbano, e em seguida para a Turquia e tentaram chegar à Europa, mas seus esforços se provaram fúteis.

"Fui a todas as embaixadas, mas ninguém abria as portas para os sírios", ela recorda. Enquanto outros refugiados pagavam agentes para contrabandeá-los ilegalmente a outros países, Balkhi sabia o bastante sobre o tráfico de pessoas para estar ciente dos riscos. "Eu queria ir legalmente. Para duas moças sozinhas, não teria sido seguro ir ilegalmente".

Isso deixou o Brasil como única escolha, mas isso dividiu as irmãs.

"Minha irmã achava que o Brasil era longe demais, e por isso voltou à Síria. Eu achava que era uma oportunidade, e por isso decidi vir", diz Balkhi. "Cheguei sozinha. Não conhecia ninguém no Brasil".

Ela pesquisou sobre o país online e fez contatos por intermédio da mesquita sunita do Pari, que a ajudou com acomodações e no estudo do idioma. Em um mês, ela encontrou emprego em uma loja de roupas, mesmo sem falar português. Hoje, ela é fluente e trabalha como assistente administrativa.

Tomando um refrigerante na elegante avenida Paulista, Balkhi parece ter conseguido ajuste rápido e bem sucedido. Nessa cidade extremamente cosmopolita, ninguém presta atenção ao seu hijab, sua religião ou à sua situação como refugiada.

"Gosto das pessoas daqui", ela diz. "São realmente gentis, me receberam muito bem. Adoram as pessoas de fora".

Mas continua a haver dificuldades causadas por diferenças culturais, especialmente o jeito aberto dos brasileiros e sua tendência a abraçar todo mundo. "Eles não conhecem muito sobre o Islã. Só acham estranho. Veem que eu uso o véu, e por isso a maioria das pessoas não tenta me abraçar, mas às vezes preciso explicar porque não troco apertos de mão, para não irritar as pessoas."

Hoje, seu maior lamento é a solidão, mas comparado com o que ela e outras pessoas já tiveram de suportar, isso é administrável.

"A guerra degradou nossos sonhos. Antes, minha esperança era a de uma carreira brilhante. Depois eu queria a paz. Depois, só menos problemas. Agora, só sobreviver", ela diz.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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