Folha de S. Paulo


Livro de Judd Apatow é carta de amor ao humor stand-up

Judd Apatow não fazia uma apresentação de humor stand-up há mais de 20 anos quando caminhou para o palco do Comedy Cellar, em Nova York, em abril do ano passado. "Estava apavorado", disse.

Apatow, 47, subiu ao palco e contou histórias que já havia experimentado em programas de entrevistas, entre as quais uma conversa sobre os desafios do sexo no casamento que rendeu risadas. "Ele ficou falando sobre como é difícil tentar ser sexy e ao mesmo tempo pensar que é hora de levar as crianças para tomar vacina", disse Amy Schumer, a estrela de "Trainwreck", o novo filme de Apatow, que se apresenta regularmente no Cellar. "E matou. Fiquei surpresa, e também com raivinha".

Um diretor de sucesso em Hollywood fazendo bico em clubes de humor instalados em porões não é exatamente típico –tente imaginar Steven Spielberg fazendo força para interagir com a plateia no Stand–, mas o sucesso no humor stand-up era o sonho original de Apatow. Isso fica claro em seu novo livro, "Sick in the Head: Conversations About Life and Comedy" (doente da cabeça: conversas sobre vida e comédia), que saiu nos EUA pela editora Random House, uma animada coleção de entrevistas com humoristas que serve como uma espécie de carta de amor a essa forma de arte e divertido retrato de como o humor stand-up mudou, de seu boom inicial nos anos 80 ao sucesso atual.

De certa forma, Apatow já vinha trabalhando nesse livro desde a adolescência. Sete das entrevistas foram realizadas para a rádio de sua escola de segundo grau, em Long Island, Nova York, nos anos 80. Quando ele decidiu transformá-las em livro, considerou que seria preciso acrescentar entrevistas novas, entre as quais conversas novas com diversas das pessoas –Jerry Seinfeld, Garry Shandling– que ele já havia entrevistado na juventude.

Os entrevistas inevitavelmente incluem muitos colaboradores —Adam Sandler, Jim Carrey, Lena Dunham– já que o currículo de Apatow no cinema ("Ligeiramente Grávidos", "O Virgem de 40 Anos", "Tá Rindo do Quê?") e televisão ("The Ben Stiller Show", "Freaks and Geeks", "Girls") o torna uma espécie de Zelig do humor.

As primeiras entrevistas são como que a educação de um jovem humorista, com Apatow fazendo perguntas técnicas e tentando provar seu conhecimento aos humoristas que eram seus ídolos. Quando Shandling pede desculpas por não ser tão engraçado na entrevista, Apatow garante: "Meu programa é muito sério".

O propósito das entrevistas que ele fazia quando adolescente, disse Apatow em conversa recente, era aprender como funciona o negócio do humor. "Foram minha escola de comédia". (Ele terminou por se matricular na Universidade do Sul da Califórnia, para estudar cinema, mas abandonou o curso sem conclui-lo.) "A primeira entrevista do livro é uma conversa com Jerry Seinfeld em 1984, e eu perguntando como é que se escreve uma piada, como é que se consegue um show. Ele explica tudo muito bem".

Na época, os humoristas não tinham tantos meios de conversar com jornalistas obcecados por comédia. Não havia podcasts, ou sites de humor, e por isso as questões curiosas e bem informadas de Apatow costumavam ser respondidas extensamente. Em 1984, Jay Leno diz que gosta de sua carreira porque ele é obscuro o bastante para ainda poder confiar em sua audiência. "Às vezes chega um momento em que você não sabe mais", disse Leno, revelando como a fama pode ser um desafio para o processo artístico de um humorista.

A espinhosa relação entre humorista e audiência é um tema constante do livro, e pode-se ver a tensão entre a perspectiva de Seinfeld, de que "o freguês tem sempre razão" e a de Michael O'Donoghue, redator de "Saturday Night Live", que declara audaciosamente que não se interessa por audiências de mais de 45 anos de idade. "Por mim, podem jogar esse pessoal todo em uma cova rasa. Não é para eles que eu escrevo", diz O'Donoghue, que morreu em 1994. (Vale lembrar que Seinfeld acrescenta, porém, que fama só vale 90 segundos de aprovação dos espectadores.)

As novas entrevistas, realizadas nos últimos anos, têm dinâmica diferente. Apatow agora é um colega, e elas parecem mais conversas amistosas. Os tópicos variam mais, de comédia a família e religião. Apatow também conversa com alguns não humoristas, como Miranda July e Eddie Vedder, só porque é fã dos dois.

O foco está menos em como fazer comédia e mais em como administrar o sucesso em um negócio complicado. As conversações se desviam para desvãos sombrios, como é comum acontecer no caso de humoristas. Quando Apatow pergunta a Carrey se o sucesso lhe dá paz, ele diz que se preocupa com a possibilidade de que a calma arruíne sua carreira, descrevendo seu trabalho como uma forma de buscar aprovação. "Se eu continuar valendo nada para mim mesmo", diz Carrey, "logo me tornarei o rei do show business".

Apatow diz que uma de suas entrevistas preferida é a de Jon Stewart, que ainda não havia anunciado que deixaria o "Daily Show". "Ao final, eu saí pensando que ele não continuaria a fazer o programa por muito mais tempo", diz Apatow. "Achei que ele tinha resumido muito bem tudo que havia feito até ali. Ele talvez já estivesse certo de que não continuaria no programa, àquela altura".

Ninguém que acompanhe Apatow no Twitter se surpreenderá por o primeiro nome que ele menciona na introdução ao livro ser o de Bill Cosby, a quem dezenas de mulheres acusam de estupro e outras formas de abuso sexual. Apatow vem travando uma campanha persistente e apaixonada contra Cosby na mídia social, de um modo raro no cauteloso show business. (Kenya Barris, criadora e produtora executiva da série "Black-ish" diz que os posts de Apatow no Twitter "beiram o estranhamente obsessivo".)

"Senti que havia um vácuo de pessoas dispostas a se pronunciar e dizer que essa é uma das coisas mais horríveis que já aconteceu em nosso ramo", ele disse. "Pode-se perceber que o mundo está disposto a deixá-lo jogar golfe, como O. J. Simpson. Não quero jogar golfe com O. J.".

Também fica claro no livro que o Apatow adulto se preocupa mais com questões morais. Em uma das entrevistas em que ele parece se portar como estadista da comédia, Dunham diz que o que a impressiona no trabalho dele é "o senso de que todos deveríamos tratar uns aos outros com mais gentileza". Questionada sobre a declaração, ao telefone, Dunham falou sobre a contribuição de Apatow como produtor executivo de sua série, "Girls".

"Em 'Girls', ele sempre nos pressiona para que tornemos Hannah mais madura, que ela cresça e seja menos egoísta", ela comentou sobre seu personagem. "Ele busca o cerne emocional de uma cena, e nem liga se ela não for engraçada".

Além de "Trainwreck" e da próxima temporada de "Girls", Apatow está trabalhando em uma série para a Netflix ("Love", uma série sobre relacionamentos, estrelada por Gillian Jacobs e Paul Rust), e em um filme sobre veteranos de guerra parecido com "A Última Missão". Mas sua identidade já não é definida por esse tipo de trabalho.

"Não quero que pensem em mim como cineasta e não como humorista", disse Apatow, que continua a fazer apresentações de stand-up regularmente. (Ele se apresenta às segundas-feiras no Beacon Theater, de Nova York.) "Precisei de muito tempo para perceber o fato –o quanto o stand-up é importante para mim. É tudo que eu sempre quis fazer. Tudo mais foi simplesmente algo que aconteceu ao longo do caminho".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: