Folha de S. Paulo


Diário de Guadalajara - O México que grita 43

Um jipe do Exército à porta, o teto aberto e duas metralhadoras a postos, exibindo sua reluzente munição dourada, era o sinal de que esta não seria uma típica edição da Feira do Livro de Guadalajara.

Em seu 28º ano, o principal festival literário do mundo hispânico esperava manifestações populares motivadas por discursos de escritores contra o governo do presidente Enrique Peña Nieto. O Exército foi chamado a vigiar as entradas por onde passaram mais de 800 mil visitantes (em duas semanas) e mais de 600 escritores, de 1.200 editoras e 42 países.

E os protestos vieram: manifestações de rua e de pedidos de justiça para a tragédia dos 43 estudantes desaparecidos no Estado de Guerrero, supostamente mortos em ação conjunta do narcotráfico e as autoridades municipais.

O ruído das passeatas interrompeu mesas e levou os autores a juntarem-se à multidão, entre eles Juan Villoro e Paco Taibo II, que engrossaram a caminhada pela avenida de las Rosas. Ainda, jovens se meteram entre estandes e palestras e, ao sinal de um apito, contavam alto até o número 43, com o público fazendo coro e, no final, gritando: "Justiça!".

Solene nas homenagens a seus mortos, neste ano a FIL havia escolhido lembrar Octavio Paz, Julio Cortázar e José Emilio Pacheco. Mas o grito por Ayotzinapa foi mais forte, encabeçado por veteranos, como Elena Poniatowska, 82, autora de "O Massacre de Tlatelolco", sobre a repressão ao movimento estudantil de 1968, e Fernando del Paso, 79, autor de "Notícias do Império", outro título importante para entender a história do México. Del Paso apareceu com uma camiseta que dizia: "No mames, Peña Nieto" (algo como: "Corta essa"), enquanto Poniatowska comparou a repressão aos protestos a crimes do nazismo.

#YAMECANSÉ

A inquietação social, que tem levado milhares às ruas na Cidade do México e em outros grandes centros do país, também tem um lado cruelmente humorístico. Camisetas vendidas no metrô, pulseiras e memes circulam com a frase dita pelo Procurador-Geral da nação, Jesús Murillo Karam, quando quis parar uma entrevista sobre o desaparecimento dos estudantes: "Ya me cansé" (já me cansei), disse, tentando interromper a onda de perguntas dos jornalistas. A cena, captada, foi repetida milhares de vezes, transformada em clipe ao som de rap e outros gêneros, enquanto a expressão virou hashtag para convocar novos protestos.

NARCOCORRIDOS

Os primeiros "corridos" nasceram no norte do país e eram dedicados a heróis da Revolução Mexicana (1910). Um dos gêneros mais populares do México, nas últimas décadas eles se tornaram uma espécie de funk carioca ou rap paulista, fazendo o elogio do marginal e da coragem diante do poder público. Daí à apologia do narcotráfico foi um pulo, e popularizaram-se os "narcocorridos", vendidos e consumidos ilegalmente.
Fãs e músicos, porém, estão mudando de atitude desde a tragédia de Ayotzinapa. Os Tigres del Norte, grupo mais famoso do gênero, disse que não fará "corridos" que mencionem o massacre.

"Nossa tarefa sempre foi contar o que se passa na vida dos mexicanos através da música. Mas agora isso ficou impossível. Por respeito às famílias, não transformaremos o caso em canção", disse Jorge Hernández, membro do grupo, em entrevista antes de um show em Sinaloa. Também nos meios de comunicação surgem colunistas que pedem moderação no consumo do gênero, por considerarem que estimula a violência.

TELONA

Enquanto o premiado diretor de "Amores Brutos", Alejandro González Iñarritú, segue o rumo de Alfonso Cuarón ("Gravidade", Oscar de melhor diretor) e aposta no sucesso nos EUA -continua acumulando prêmios de festivais alternativos dos EUA com seu "Birdman", com Michael Keaton e Edward Norton-, os mexicanos têm lotado os cinemas para ver tramas baseadas na realidade do país.

Depois de "El Infierno" (2010), sobre um imigrante que volta do exterior e entra para o narcotráfico, o diretor Luis Estrada volta com "La Dictadura Perfecta", uma sátira sobre o mundo da corrupção. A expressão é uma citação do peruano Mario Vargas Llosa, que uma vez se referiu ao PRI (Partido Revolucionário Institucional) desta forma -pelo fato de o partido ter ficado no poder 70 anos.

SYLVIA COLOMBO, 42, é repórter especial da Folha e assina um blog no site do jornal. Foi a Gudalajara a convite da FIL.


Endereço da página: