Folha de S. Paulo


Milhões de chineses se rendem a sucessos da TV ocidental

"Downton Abbey", "Sherlock" e versões locais de "Big Brother" e "The X Factor" estão abrindo um mercado potencialmente enorme

O fato de capítulos legendados de "Downton Abbey" serem vistos por 160 milhões de pessoas revela a paixão dos chineses por programas de TV estrangeiros e formatos refeitos para seu mercado. "Big Brother" e "Educating Yorkshire" são os programas mais recentes que estão prestes a ganhar uma versão chinesa, e os exportadores de programas ocidentais ao país mais populoso do mundo estão vivendo um boom.

A China é o mercado que mais cresce para programas e formatos britânicos, tendo subido 40% no ano passado. Ainda é relativamente pequeno em termos de receita, mas o potencial é imenso. "No Reino Unido um programa muito bem avaliado por alcançar menos de 100 milhões de telespectadores, mas a China tem 1,4 bilhão de habitantes e pode facilmente dobrar, triplicar ou quadruplicar essa audiência", diz Pierre Cheung, vice-presidente para a China maior da BBC Worldwide. "O mercado chinês é uma oportunidade grandiosa."

AFP PHOTO-23.nov.2010 / Shanghai Media Group
Concorrentes no
Concorrentes no "China's Got Talent"

Cada episódio de "China's Got Talent", uma versão local do sucesso de Simon Cowell, é visto por mais de 400 milhões de pessoas. Versões chinesas de franquias ocidentais reúnem a atração do exótico com a familiaridade da estética local. Os concursos de canto são especialmente populares: "China's Got Talent", "The Voice of China" e "China's Strongest Voice" (uma versão de "The X Factor") todos fizeram grande sucesso.

No mês passado a BBC lançou na emissora nacional chinesa Shanghai Dragon TV a versão chinesa de "Top Gear", com um duas vezes ouro olímpico no mergulho, o apresentador de "Chinese Idol" e um astro pop e ator no lugar dos apresentadores britânicos Jeremy Clarkson, James May e Richard Hammond.

Os programas têm diferenças marcantes em relação aos originais ocidentais. "The Voice of China", o programa de maior audiência em 2013, iniciou o episódio final de sua terceira temporada, em 7 de outubro passado, com uma tomada da Grande Muralha da China, enquanto um narrador louvava os milhares de anos de história do país. Em seguida o programa mostrou depoimentos de fãs e ex-participantes: um idoso, uma família de classe média, um agricultor e um turista estrangeiro na praça Tienanmen.

"Com 'The Voice of China', todos nós, amantes da música, podemos buscar nossos sonhos", disse um homem segurando um alaúde. O programa é cheio de baladas sentimentais. Os comentários dos jurados são sempre positivos.

Os próximos programas britânicos a ganhar remakes chineses serão "Educating Yorkshire" e "Big Brother", este potencialmente problemático. No Reino Unido, as cenas às vezes indecentes que acompanham "Big Brother" frequentemente causam problemas com o órgão nacional de censura, o Ofcom - que não chega perto do rigor do todo-poderoso órgão chinês Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão, que atua como guardião cultural notoriamente intolerante.

O órgão já proibiu programas diante do menor indício de atitudes ou imagens que mostrem a China ou seus habitantes sob ótica negativa. Em 2011, proibiu o show de talentos "Super Girl", ao estilo de "X Factor", que atraía 400 milhões de espectadores, e no outono passado anunciou que vai proibir canais de TV por satélite de transmitir mais de um programa por ano de formato estrangeiro. Os canais substituíram esses programas por outros que o governo considera mais aceitáveis, como documentários sobre a história do Partido Comunista. O problema é que ninguém quer ver essas produções.

Comentou-se que "Sherlock", da BBC, com Benedict Cumberbatch, teria sido proibido nos principais canais chineses. Mas Cheung, da BBC, nega a informação, dizendo que apenas foi preciso tempo para o programa passar de um site chinês de vídeos para a emissora estatal CCTV.

Martha Brass, a executiva operacional chefe da Endemol, a produtora do BB, diz que uma colaboração cuidadosa com sua parceira Youku Tudou, o "YouTube chinês", vai resultar numa versão "saneada" que conseguirá passar pela censura. "Em qualquer país é preciso analisar o ambiente cultural e regulatório, e temos muita consciência disso em relação à China", ela diz. "'Big Brother' é um formato muito flexível, na realidade. Nas Filipinas, é um programa muito família; na Austrália nós o exibimos em vários horários diferentes, para públicos diversos. Temos confiança em nossa capacidade de nos adaptarmos às normas que regulam a televisão na China."

A ascensão de serviços de vídeo chineses como Sohu TV, Tencent e iQiyi abriu um enorme e novo mercado potencial para os donos dos direitos sobre programas estrangeiros.

A terceira temporada de "Sherlock" já foi vista por mais de 70 milhões de pessoas online, e o seriado americano "The Big Bang Theory", o programa estrangeiro mais popular na China, já foi visto mais de 1,4 bilhão de vezes em sites de vídeo.

"As novas plataformas de mídia estão apenas começando a fechar acordos com mais e mais programas estrangeiros", diz Paul Sandler, diretor gerente da Objective Productions. "O impacto disse sobre o mercado de conteúdos pode ser enorme."

Fica claro, contudo, que o órgão regulador estatal vê o crescimento dos programas online e a popularidade de programas estrangeiros como ameaça. Em abril os sites que oferecem streaming de vídeo receberam ordens de "fazer uma faxina" e parar de exibir "The Big Bang Theory" e os seriados americanos "The Good Wife", "NCIS" e "The Practice". Programas que poderiam ser vistos como tendo muito mais chances de enfurecer a censura - "The Walking Dead", "House of Cards" e "Breaking Bad"-não foram afetados.

Três anos atrás a China ainda era vista por produtoras estrangeiras como uma espécie de "Velho Oeste oriental". Não faltam histórias sobre a impossibilidade de fazer negócios e sobre o hábito onipresente de piratear formatos estrangeiros sem pagar pelos direitos.

"Se a China quiser ser levada a sério no mercado internacional, terá que tratar a propriedade intelectual com o respeito devido", diz Sandler, que fechou contratos para a exibição de três temporadas de uma versão chinesa do game show "The Cube". "Existe agora uma disposição do governo de ter uma estrutura correta de proteção de IP. A situação está bem melhor que alguns anos atrás."

Sandler acha que o objetivo da televisão chinesa é colaborar e aprender como desenvolver programas de sucesso que ela própria possa exportar.

A China tem alguns sucessos nacionais interessantes, incluindo um concurso nacional nos mesmos moldes que "The Great British Bake Off", mas baseado na caligrafia; seu título, traduzido de modo aproximado, é "Herói Idiomático". Mas ainda há um bom caminho a percorrer até que esses programas possam atrair espectadores internacionais.

"O verdadeiro objetivo de todas as emissoras e do governo chinês é desenvolver programas chineses e exportá-los", diz Sandler. "A mesma coisa que eles fazem com carros, computadores, geladeiras e tantas outras coisas. Estamos tentando colaborar para criar alguns formatos genuinamente bons."

Nem todos estão bem impressionados. Para um mercado de 1,4 bilhão de pessoas, um total de apenas £17 milhões em vendas de programas e formatos britânicos em 2013 parece muito pouco, diz um executivo sênior da TV britânica. Mas Cheung discorda. Para ele, construir relacionamentos com a China é um processo demorado, e os lucros reais ainda estão por vir. "É preciso envolver-se e interagir pessoalmente com os parceiros; leva-se tempo para gerar a confiança necessária. É um desafio, mas ao mesmo tempo é instigante. Se conseguirmos penetrar na China, qualquer outro mercado será fácil."

Tradução de CLARA ALLAIN


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