Folha de S. Paulo


Toda arte pública é uma declaração política

De heroicos homens brancos a mães solteiras de bronze, nossas escolhas refletem a mudança nas atitudes prevalecentes

"A família nuclear é uma realidade, mas uma entre muitas", diz Gillian Wearing sobre sua mais recente obra: uma estátua de duas mães solteiras e seus filhos inaugurada na semana passada em Birmingham. "Esta obra celebra a ideia de que aquilo que constitui uma família não deveria ter forma fixa".

A peça em si é bastante discreta: mostra as irmãs Roma e Emma Jones de mãos dadas, acompanhadas pelos filhos Kyan e Shaye, e enfatiza a barriga de gestante de Emma –hoje o bebê Isaac–, tudo isso em bronze. Mas a reação vem sendo previsivelmente dramática. "Pai nenhum à vista", resmungou o "Daily Mail", o que provoca a questão: se uma obra de arte pública não causar resmungos do "Daily Mail", pode-se dizer que ela existe?

As irmãs não demonstram arrependimento algum, e se declaram orgulhosas por representar Birmingham, e sua mãe, que as criou sem marido, concorda: "São meninas adoráveis, criadas do jeito certo", ela disse a jornalistas. São três gerações que se amparam e gostam –não seria essa a definição de família, para lá da simples aritmética de mãe mais pai mais filhos? Para a maioria de nós, famílias são uma coleção disparatada de avós, tios e amigos perpétuos: o que importa é o amor, não a configuração.

O "Daily Mail" está certo, é claro, ao entender a estátua como uma declaração política. É exatamente isso que ela é. Mas toda peça de arte pública é uma declaração política, mesmo aquelas que apoiam o status quo ou se recusam a fazer quaisquer comentários sociais. Se você deseja saber quem ou o que uma sociedade celebra, observe suas praças públicas. As fileiras inexpugnáveis dos Grandes Homens Brancos não são um acidente, um padrão neutro –e tampouco estão lá porque todos os escultores anteriores a 1900 adoravam, adoravam mesmo, esculpir cavalos.

Quando Marc Quinn venceu o concurso para ocupar a quarta coluna de Trafalgar Square, com a escultura "Alison Lapper Pregnant" –a figura de uma colega artista grávida que sofria de uma condição genética que encurtava seus membros–, ele via a peça como contraponto à grandeza priápica da Coluna de Nelson. "Essa praça celebra a coragem de homens no campo de batalha", ele disse na época. "A vida de Alison é uma luta para superar dificuldades muito maiores do que as de muitos dos homens que celebramos e comemoramos aqui".

O outro ponto a considerar é que a história pode ser contada pelos vencedores, mas a arte pertence aos ricos. Por séculos, artistas dependeram de patronos para não morrer de fome, o que legou às galerias de arte um excesso de retratos criados para inflar os egos de homens endinheirados. Um exemplo é o rei inglês Carlos 1º. Há uma ótima razão para que Van Dyck o tenha retratado tão frequentemente a cavalo: o rei era baixinho. Luís 14, da França, convocou um dublê de pernas para seu retrato de Estado, a fim de garantir que seus tornozelos parecessem suficientemente monárquicos. Se você se tornar sócio do National Trust britânico, logo perceberá que nenhuma das mansões do país podia se considerar completa sem um quadro que retratasse o proprietário da casa, cercado por símbolos de sua riqueza e virilidade. Em contraste, "A Real Birmingham Family" foi bancada por verbas governamentais e muitas pequenas doações.

Ainda que as galerias nacionais britânicas estejam entre os maiores tesouros do país (e o acesso a elas seja gratuito!), não há como evitar o fato de que alteram e distorcem nossa visão do passado. Se você caminhar pelas seções dedicadas ao início da Era Moderna, seria perdoável imaginar que a população inteira do Reino Unido fosse formada por homens, em grandes chapéus, causadores da morte de muitos outros homens, e por suas mulheres, recobertas de joias, carregando nas mãos uma fruta exótica e/ou uma criança robusta de boina. De vez em quando uma figura rústica se infiltra na cena, mas o mais frequente é que ela sirva apenas como adereço pitoresco e não como retrato de um ser humano dotado de esperanças, medos e pensamentos próprios.

Leon Neal-31.out.2014/AFP
A instalação
A instalação "Blood Swept Lands and Seas of Red", na Torre de Londres, do ceramista Paul Cummins e do cenógrafo Tom Piper, que celebra os cem anos do começo da Primeira Guerra

A arte avança por ação e reação, por isso não surpreende que os artistas, assim que se libertaram desse sistema, tenham alargado sua tela para incluir os marginalizados e oprimidos, além dos ricos e poderosos. A deslumbrante série de Grayson Perry sobre a identidade, no Channel 4, explora exatamente esse ponto. O novo trabalho dele para a National Portrait Gallery deliberadamente evita o que ele chama de Grande Homem Branco: o homem heterossexual, branco, de classe média, que domina a sociedade e a política.(Essa categoria demográfica compreende apenas 10% da população, mas os líderes de todos os quatro grandes partidos políticos britânicos fazem parte dela.)

Em lugar disso, Perry se volta a temas menos tradicionais, como uma jovem convertida ao islamismo que optou por usar o hijab (véu muçulmano), e um transexual. (E essa talvez seja apenas a segunda pessoa transexual na National Portrait Gallery; a primeira é um aventureiro e espião magnificamente andrógino do século 18 conhecido como Chevalier d'Eon, cujo retrato, por Thomas Stewart, inicialmente era visto como representação de uma mulher do século 18.)

Em ensaio para a revista "New Statesman", Perry citou o velho lema feminista: "Objetividade é subjetividade masculina". Em outras palavras, se cabe a você enquadrar a discussão, você se torna o que a maioria das pessoas vê como "norma". Os ricos e os excepcionais se tornaram o papel de parede de nossa ideia de história porque eram eles que dispunham dos meios para criar um legado visual.

Mas vivemos uma era mais democrática, e suspeitamos muito mais daqueles que se designam como messias, heróis e revolucionários. As papoulas da Torre de Londres –uma para cada um dos 888.246 britânicos mortos na Primeira Guerra Mundial– capturam esse clima com grande beleza. É uma celebração da Grande Guerra que a torna qualquer coisa a não ser grande, porque o que torna belas as papoulas –seu imenso número– também é o que as faz tão melancólicas.

Existem duas narrativas concorrentes sobre a Primeira Guerra Mundial: a primeira, promovida pelo governo da era, falava de um conflito nobre e patriótico para o qual não se alistar seria covardia. A segunda é resumida por Edmund Blackadder na série de humor homônima, quando ele diz que milhares de homens tiveram de morrer para avançar o armário de uísque do Marechal Haig "15 centímetros na direção de Berlim". A arte e poesia criadas durante a guerra refletem essa disputa pela supremacia narrativa.

Contemplando a vasta tapeçaria de papoulas vermelhas, em uma visita à Torre de Londres meses atrás, recordei as palavras de Wilfred Owen, o melhor poeta britânico da guerra, morto em ação em 4 de novembro de 1918, uma semana antes da assinatura do armistício.

"Que sinos dobram para os que morrem como gado?", ele escreveu em "Hino a uma Juventude Condenada". "Apenas a ira monstruosa dos canhões".

Lá estava a guerra vista de perto: sem vitórias, sem glória, só lodo e esqualidez, e a possibilidade de deixar para trás nada mais que um túmulo sem identificação e um nome no telegrama enviado aos pais enlutados.

Leon Neal-31.out.2014/AFP
A instalação
A instalação "Blood Swept Lands and Seas of Red", na Torre de Londres, do ceramista Paul Cummins e do cenógrafo Tom Piper, que celebra os cem anos do começo da Primeira Guerra

A mostra da Torre prova que a visão de Owen sobre a guerra triunfou. E é exatamente assim que deveria ser: deveríamos nos interessar mais por celebrar o que é comum, porque o comum é muitas vezes extraordinário. Isso não significa excluir inteiramente o Grande Homem Branco dos livros de História e das estátuas, mas, parafraseando Gillian Wearing, saber que essa é apenas uma das maneiras de ser grande. Uma de muitas.

Helen Lewis é editora assistente do "New Statesman"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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