Folha de S. Paulo


Um dia muito especial

Apesar do título desta crônica, que evoca um dos mais singelos e belos filmes de Ettore Scola, confesso que não lembro o dia exato em que encontrei pessoalmente o cineasta italiano.

Recordo que foi numa sessão de "Um Dia Muito Especial" ("Una Giornata Particolare"", 1977), em que Sophia Loren e Marcello Mastroianni protagonizam uma história sobre liberdade em tempos sombrios, mais precisamente no dia em que Hitler visitava Roma.

Antes da projeção, Scola, então com 75 anos, apresentou o seu longa-metragem, lamentou estar cansado e não ter mais paciência para dirigir um filme. Ele saiu da sala assim que a película começou a ser exibida.

O filme foi exibido na Casa del Cinema, instituição cultural localizada na Villa Borghese, o principal parque romano, como parte especial da programação da mostra em homenagem a Mastroianni nos dez anos da sua morte.

Além de Scola, outros expoentes do cinema italiano passaram pelo local, ao longo de quase um mês, para falar sobre o ator: Mario Monicelli (que o dirigiu nos filmes "Os Eternos Desconhecidos" e "Os Companheiros"), Marco Bellocchio (que o dirigiu em "Enrico 4°"), Vittorio Taviani (que, com o irmão Paolo, dirigiu o ator em "Allonsanfàn"), Tonino Guerra (que roteirizou com Fellini e Tullio Pinelli o filme "Ginger e Fred", que tem Giulietta Masina e Mastroianni como protagonistas), Stefania Sandrelli (que atuou com o galã no filme "Divórcio à Italiana", de Pietro Germi), entre outros. Foi, porém, com Scola que me surgiu uma oportunidade inesperada.

Arquivo Pessoal
O jornalista Euclides Santos Mendes (à esq.) ao lado do cineasta italiano Ettore Scola, em Roma, em 2006
O jornalista Euclides Santos Mendes ao lado do cineasta italiano Ettore Scola, em Roma, em 2006

Após a sessão de "Um Dia Muito Especial", que eu acabara de assistir em película pela primeira vez, saí da sala de projeção ainda meio atordoado, imerso num tempo movediço a meio passo entre o filme e a vida (como costuma acontecer a cinéfilos incuráveis). Pensava no modo como o diretor transformou o transcorrer de um dia em Roma nos anos 1930 numa história comovente sobre a pureza dos afetos em contraposição ao terror fascista.

Era noite quando saí da Casa del Cinema. Não percebia que Scola ainda estava por ali, numa mesa, conversando com amigos. Quando distraidamente passei perto do grupo, senti um braço que me deteve. Ao virar-me, vi uma mulher idosa, amiga de Scola, que me perguntou o que achei do filme. Somente então olhei em torno e vi o diretor reunido com amigos. Havia taças de vinho sobre a mesa.

Disse a Giovanna -assim se chamava a mulher que me interpelou- que havia apreciado muito o filme do "sr. Scola", mas tinha predileção por outra obra dele: "O Baile" (1983). Expliquei: "Acho fantástico como o sr. Scola, em 'O Baile', narra muito bem uma história só com imagens, sem diálogos".

Percebi que alguns dos amigos do cineasta aprovavam minhas palavras. Subitamente, a atenção de Scola dirigiu-se ao que eu dizia. Ele me olhava meio desconfiado, temendo talvez que me atirasse a seus pés e declarasse minha admiração incondicional pela sua obra.

Por isso, creio, ele mantinha a face contraída, com expressão de mau humor. Eu já tinha percebido essa expressão quando, horas antes, na apresentação de "Um Dia Muito Especial", ele disse não ter mais paciência para dirigir filmes.

Mesmo assim, tomei coragem e lhe pedi licença para tirar uma fotografia consigo. Ele imediatamente se opôs. "Non me piace", disse. Uma mulher diante dele insistiu para que deixasse de lado o mau humor e atendesse ao pedido do fã estrangeiro. Ele então balançou a cabeça levemente para cima e para baixo, em sinal de aprovação.

Sentei-me a seu lado e a mulher que intercedera a meu favor tomou a minha câmera fotográfica e, clique, capturou aquele instante decisivo (ora aqui reproduzido), em que o diretor de "Feios, Sujos e Malvados" (1976) parece lamentar ter de aparecer numa fotografia. Depois, nos despedimos e fui embora pela via Veneto, feliz da vida.

Hoje, revendo esta fotografia e depois de ter assistido ao novo filme de Scola ("Que Estranho Chamar-se Federico", que realizou após dez anos de jejum cinematográfico), entrevejo um meio sorriso na face do cineasta. Talvez ele não seja tão mal-humorado como pensei na ocasião em que o conheci. Creio hoje que sua expressão traduz o peso do amor e da seriedade com que esse homem de cinema encara seu ofício.

EUCLIDES SANTOS MENDES, 33, é editor do "Painel do Leitor" da Folha e doutor em multimeios (cinema) pela Unicamp.


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