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Contar histórias deve ser prioridade do cinema brasileiro, dizem diretores

Fotomontagem// Zanone Fraissat/ Folhapress// Hannibal Hanschke/Reuters//Divulgação
Fotomontagem com os diretores Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado
Fotomontagem com os diretores Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado

Caminhando sob o calor abrasador de Fortaleza, o diretor pernambucano Marcelo Gomes, 54, conta uma anedota sobre a passagem de Orson Welles pela capital cearense. Rodando o documentário "É Tudo Verdade" nos anos 1940, o cineasta americano teria se queixado de que por ali "o sol brilha demais".

Fortaleza também serve de termômetro para outro tipo de temperatura, a do cinema brasileiro. Faz cinco anos que a cidade é um "hub" para novos roteiristas por meio do Laboratório de Audiovisual/Cinema, espaço de formação sediado no Porto Iracema das Artes, escola pública ligada ao Instituto Dragão do Mar.

Diretor de "Joaquim" e "Cinema, Aspirinas e Urubus", Gomes é um dos três tutores do curso, desde o seu início, junto do cineasta cearense Karim Aïnouz, 51, de "Madame Satã" e "Praia do Futuro", e do baiano Sérgio Machado, 49, de "Cidade Baixa" e "Tudo que Aprendemos Juntos"
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Durante sete meses, os três orientam seis projetos de roteiro de realizadores do Nordeste. Dos 28 projetos que já passaram por lá, um virou longa ("Inferninho", de Pedro Diógenes e Guto Parente), um virou curta ("Abissal", de Arthur Leite, premiado no festival É Tudo Verdade) e outros 15 estão em fase de captação ou pré-produção.

Como o projeto de roteiro é a pedra inaugural de um filme, é nele que se percebem mais imediatamente os temas que movem os cineastas. Em 2017, as propostas estão mais carregadas, fruto dos atuais tempos turbulentos, segundo os tutores dizem à Folha.

Figuras centrais na retomada do cinema brasileiro, a partir dos anos 1990, os cineastas comentam a evolução dos projetos, o status da produção nacional e o êxito dos filmes autorais feitos por realizadores do Nordeste. Atualmente, os três cultivam projetos documentais.

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EVOLUÇÃO DOS ROTEIROS
Marcelo Gomes - Antes as pessoas não pensavam muito no público. Isso mudou. Hoje querem se apropriar de temas que falem com o público e fazer coisas contundentes.
Karim Aïnouz - Eram sobre temas mais crônicos: amizade, amor, sobre o "coming out" [a saída do armário]. Daí foram mudando muito. Hoje eles têm sangue no olho, urgência e mais violência. Têm mais ação do que contemplação. É uma reação a um país que está passando por um desmonte vertiginoso.
Marcelo Gomes - Os projetos giravam em torno do drama naturalista, como no cinema brasileiro. Havia poucas propostas de filme de gênero.
Karim Aïnouz - Essa coisa do drama naturalista ficou fora de cena. É como se o real já não desse mais conta. O cinema tem que conversar com o público. Na minha geração, o narrar era tido como algo problemático.
Sérgio Machado - Nos primeiros anos havia uma ideia de que narrar era uma coisa careta e que o bacana era experimentar; escrever num dia e filmar já no outro. Tínhamos um esforço enorme para convencê-los de como era importante narrar.
Karim Aïnouz - Não é à toa que o cinema argentino e o chileno são bem vistos fora. Eles têm tradição de formação em dramaturgia. Aqui, nas escolas de cinema, o que se preza é o cara ser diretor, e não contar uma história. Com a revolução digital se passa ao ato muito rápido. E nos filmes não acontecia muito.

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Wagner Moura em cena ede
Wagner Moura em cena ede "Praia do Futuro", de Karim Aïnouz

FAZER FILMES NO NORDESTE
Sérgio Machado - Ninguém no Nordeste faz cinema porque o pai botou na faculdade. Faz porque gosta mesmo.
Marcelo Gomes - É uma luta inglória. Eu me lembro da época em que Karim estava com "Madame Satã", e eu com "Cinema, Aspirinas e Urubus". Achavam exótico um cearense e um pernambucano fazendo filmes, falavam "Ai, que gracinha". Tem também um elemento histórico. O Nordeste foi o começo da civilização brasileira, por causa da cana de açúcar...
Karim Aïnouz - Esse argumento é tão pernambucano....
Marcelo Gomes - Mas é verdade. Tem uma literatura muito forte no Nordeste. Passou-se uma onda de cultura.
Karim Aïnouz- Não sei se o cara que está na China quer ver um filme rodado em São Paulo. O que tem ali que não tem na China? E não sei se quer mais um feito no Rio. A gente habita um planeta muito singular. Esta cidade [Fortaleza] é outro planeta: Cancún encontrou Beirute.

CRISE DAS SALAS DE CINEMA
Karim Aïnouz - As novas gerações dificilmente sairão de casa para ir ao cinema. Tem de ser algo eletrizante. Uma distribuidora me falou que as pessoas hoje só vão ao cinema para sentirem medo juntas ou para rirem juntas.
Marcelo Gomes - É difícil entender como vamos narrar para pessoas que têm uma relação diferente com o cinema. Talvez buscando sensorialidade, entender as técnicas de narração e trazer uma experiência sensorial para dentro do cinema.
Sérgio Machado - O cinema precisa engajar, precisa surpreender. E você tem de desenvolver essa necessidade nos realizadores desde cedo.
Karim Aïnouz - Em 2017, todos podem filmar o real com celular. Quem vai ao cinema quer ver algo que não pode fazer. Temos que engajar o público por uma hora e meia. E isso é narrar. Ou você narra ou perde o jogo. Vi "Bom Comportamento" [dirigido por Benny e Josh Safdie]. É demais. Tem dispositivo narrativo clássico, mas te surpreende. É instigante.
Marcelo Gomes - O cinema tem que transportar as pessoas, ou elas ficarão nas séries.

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Cena do filme 'Joaquim', de Marcelo Gomes
Cena do filme 'Joaquim', de Marcelo Gomes

CINEMA EM TEMPOS DE CONVULSÃO POLÍTICA
Marcelo Gomes - Qual foi o período de mais riqueza no cinema italiano? O pós-Guerra, quando estava tudo destruído. A inflexão social gera um cinema de invenção.
Karim Aïnouz - Alguns anos atrás tudo estava apaziguado. Agora há uma descarga elétrica, péssima para o país, mas benéfica ao cinema.
Sérgio Machado - Eu estava filmando no Piauí para o documentário "Aqui Deste Lugar" [sobre famílias que cruzaram a linha da pobreza], quando começaram os protestos de junho de 2013. Me deu que uma sensação de que algo muito ruim aconteceria. Eu estava apavorado, porque via coisas dando certo.
Marcelo Gomes - Sim, os protestos foram fagocitados pela direita, que elaborou tudo aquilo muito bem.
Sérgio Machado - O Rafa [Amorim, um dos alunos] diz uma coisa interessante: para algumas pessoas, o Estado de exceção já tinha chegado.
Marcelo Gomes - Os frutos podem ser bons na arte, porque refletem o estado social que estamos. Mas surgem coisas cruéis, os fascistas.
Karim Aïnouz - A indignação é produtiva. Fiz "Madame Satã" porque sentia raiva. O primeiro filme é sempre um vômito descontrolado. Não queria fazer cinema delicado.

O MOMENTO ATUAL DA PRODUÇÃO BRASILEIRA
Sérgio Machado - O cinema brasileiro tem números de uma indústria que dá certo. Para acabar com isso, o presidente teria que ser um alucinado. Só um Bolsonaro.
Marcelo Gomes - Mas algumas linhas de financiamento podem sofrer, as mais autorais. Para os jovens realizadores, pode ficar mais difícil.
Karim Aïnouz- Saí do Brasil na década de 1990 porque não tinha como filmar, não havia financiamento. Aquilo nos calou. Hoje em dia a situação é distinta, as pessoas vão continuar fazendo, mas eu acho preocupante essa perspectiva neoliberal, de que tudo tem que dar lucro. A questão é como se domestica a imaginação. Vai haver um recrudescimento por um lado, mas, por outro, algumas vozes não serão caladas.

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Cena de 'Tudo que Aprendemos Juntos', de Sérgio Machado
Cena de 'Tudo que Aprendemos Juntos', de Sérgio Machado

O jornalista GUILHERME GENESTRETI viajou a convite do Instituto Dragão do Mar


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