Folha de S. Paulo


Novo festival de cinema na China testa limite da independência face à censura

Conversar com um diretor estreante durante um festival de cinema e ouvir um pedido de que suas declarações não fossem citadas pareceu estranho.

O cineasta explicou mais tarde que ficou com medo, porque uma conversa sobre o cinema na China havia deslizado para a questão da censura no país, e a maneira como ela afeta os cineastas que lá trabalham.

E essa era a questão que pendia sobre o festival de cinema de uma semana de duração que estreou no sábado na cidade murada de Pingyao, um local histórico da China —será possível criar e exibir filmes independentes em um país que desaprova a independência, e ainda mais a dissensão?

"Há um nível", disse Sun Liang, outro jovem cineasta cujo filme experimental, "Kill the Shadow", foi exibido na terça-feira no Pingyao International Film Festival, depois de fazer sua estreia internacional em setembro, no festival de Montreal. "É preciso não fazer um filme violento ou inapropriado demais, que ultrapasse aquele nível".

As coisas "provavelmente são assim em todos os países", ele acrescentou.

Mas na verdade não são. O controle da China sobre a cultura é tão férreo quanto o controle sobre a mídia, a política e a economia. E esse controle parece ter se estreitado ainda mais sob o governo do presidente Xi Jinping, que usou o congresso do Partido Comunista, no mês passado em Pequim, para se consagrar como o mais poderoso líder da China em uma geração.

Por coincidência, o festiva parece ter se tornado um teste inicial daquilo que é considerado aceitável em um período que agora se tornou conhecido como "a era Xi".

O evento foi concebido por Jia Zhangke, um dos mais célebres cineastas independentes da China, cuja obra —bruta, violenta, politizada— já caiu vítima dos censores.

Ele disse que seu objetivo era mostrar filmes artísticos que de outra forma não teriam como atingir uma audiência ampla, no país e mais além. Jia batizou o festival como "Festival Internacional de Cinema Tigre e Dragão", em homenagem ao filme de artes marciais lançado em 2000 pelo cineasta Ang Lee.

Ele gostaria que o festival se tornasse a versão chinesa do Sundance —o maior festival de cinema independente dos Estados Unidos— ainda que talvez com "características chinesas", como as autoridades gostam de dizer por aqui.

É impossível imaginar o gabinete do governador do Utah selecionando os filmes que serão exibidos pelo Sundance em Park City, é claro, mas é exatamente isso que as autoridades da província de Shanxi, onde se localiza Pingyao, fizeram quanto aos 52 filmes exibidos no evento.

Jia disse que o cinema independente ainda pode florescer na China, a despeito de restrições como essas. "Quase 800 filmes são rodados na China a cada ano, entre eles muitos trabalhos de diretores jovens e talentosos", afirmou.

Os diretores e produtores que compareceram, mesmo aqueles que falaram com franqueza sobre os limites impostos ao seu trabalho, concordam. Por enquanto continua a haver espaço para a criatividade, eles disseram.

Mesmo assim, também era evidente que o festival não tinha como escapar à atração gravitacional da política do país. Sua data original seria uma semana mais cedo, mas quando a data do congresso do partido foi anunciada, o calendário do festival teve de mudar.

O filme escolhido para abrir a mostra, "Youth", também se viu emaranhado nas regras não escritas da política do congresso. O lançamento nacional marcado para outubro foi abruptamente cancelado, ainda que o trabalho de promoção para a estreia já tivesse começado.

Muitos críticos presumiram que isso aconteceu porque o filme trata de um evento histórico —a mal sucedida guerra chinesa contra o Vietnã, em 1979— que aparentemente contraria a mensagem de força nacional que o congresso planejava difundir.

O adiamento foi, é claro, tema da primeira pergunta na entrevista coletiva de abertura do festival, e a resposta do produtor, Ye Ning, presidente-executivo da Huayi Brothers Media, foi evasiva. (Apesar de o filme ter estreado no festival, seu lançamento nacional continua a não ter data.)

Marco Muller, o diretor artístico do festival, reagiu criticando os jornalistas e pedindo que eles dirigissem suas perguntas a Feng Xiaogang, o diretor do filme, e a duas das atrizes principais. "Vamos enfatizar os aspectos artísticos", disse Muller, um organizador experiente de eventos culturais cujo papel em outro festival pioneiro na China, na antiga colônia portuguesa de Macau, foi encerrado abruptamente com seu pedido de demissão no ano passado.

Agang Yargyi, cineasta tibetano que viajou da província de Sichuan, no oeste da China, para participar, expressou admiração pela escolha do tema histórico por Feng, definindo-o como "muito ousado".

Agang, 27, já fez três curtas-metragens, um dos quais, "Dream", exibido em festivais de cinema na Finlândia e em Washington. Ele descreveu os desafios que os realizadores chineses enfrentam, no caso dele agravados por seus laços étnicos para com uma região às vezes inquieta. Ele não conseguiu visto para acompanhar seus filmes no circuito dos festivais, por exemplo.

"A China é um país que não revisa sua história", ele disse.

E no entanto a conturbada história do país é inescapável.

O centro histórico de Pingyao, que faz parte da lista de patrimônio cultural da humanidade da Unesco, foi construído há 2,7 mil anos. As muralhas de 10 metros de altura circundam ruas estreitas e evocativas e pátios ocultos por trás de portas de madeira desgastadas. Muitas estruturas foram restauradas elegantemente, para atender aos milhões de turistas que visitam uma das poucas cidades antigas chinesas nas quais o passado foi preservado.

Jia escolheu Pingyao porque a cidade fica perto de onde ele nasceu. Um de seus filmes, "Platform", tem a cidade como cenário e inclui um encontro entre dois dos protagonistas no topo das muralhas. O filme trata de um grupo de teatro no auge da era da Revolução Cultural, que devastou a elite cultural da China.

O único cinema na cidade velha de Pingyao, ironicamente, é uma construção moderna, datando de 1965, pouco antes que o líder comunista Mao Tsé-Tung deflagrasse a Revolução Cultural. O cinema foi fechado em 2003, mas reinaugurado no ano passado como museu. Uma bandeira vermelha pende do edifício com os dizeres "vida longa ao grande líder, camarada Mao".

O festival tem apoio financeiro do governo regional, que espera que ele ajude a atrair ainda mais visitantes à cidade.

A noite de abertura atraiu 1,5 mil espectadores, de acordo com os organizadores. Os fãs se apertavam junto às barricadas que delimitavam o tapete vermelho, para fotografar os grandes atores e atrizes da China.

Entre eles estava a atriz Fan Bingbing, cujo filme mais recente, uma aventura patriótica chamada "Sky Hunter", foi exibido no festival. O filme foi produzido em cooperação com as forças armadas chinesas e tenta promover a visão do governo, exaltando a força do país. A inclusão desse trabalho na mostra certamente contraria a definição usual de "filme independente".

Mas aparentemente são esses os compromissos requeridos para realizar um festival na China. Os cartazes de divulgação dizem " Pingyao Ano Zero", sinalizando a esperança de Jia de que o evento seja duradouro.

Feng, 59, o diretor de "Youth", minimizou as questões políticas que circulavam no festival. Ele viveu a Revolução Cultural e a corrida curativa rumo ao capitalismo que se seguiu a ela, e lembrou aos jovens cineastas que as coisas no passado eram piores.

"Muitos cinemas foram demolidos, transformados em saunas, banhos públicos e casas noturnas", ele disse. "Talvez todo jovem diretor tenha a ilusão de que suas circunstâncias são as mais difíceis, que ele é especialmente infortunado, mas isso não é verdade".

Ele encerrou com o que parecia ser um apelo à perseverança.

"Os jovens diretores atuais", ele disse, "não devem se deixar abater por dificuldades e revezes".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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