Folha de S. Paulo


Livros e filme celebram o centenário de Antonio Callado

Em "Quarup", romance de Antonio Callado (1917-1997), o centro geográfico do Brasil fica a dez graus e vinte minutos ao sul do Equador e 53 graus e 12 minutos a oeste do Meridiano de Greeenwich.

Quando os personagens chegam ao local, ele está ocupado por um imenso formigueiro de saúvas. Um dos personagens se aproxima com o ouvido rente ao chão. Já coberto pelas formigas, questiona um outro se também consegue ouvir o coração do país -logo à frente, ele morre.

Dadá Cardoso/Folhapress
O escritor Antonio Callado (1917-1997) em foto tirada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em dezembro de 1995
O escritor Antonio Callado (1917-1997) em foto tirada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em dezembro de 1995

O coração do país infestado por formigas venenosas é uma imagem que diz muito sobre a obra de Callado, que completaria cem anos nesta quinta-feira (26). O romance saiu em 1967, um ano antes do AI-5.

O escritor, jornalista e dramaturgo legou uma obra com a ambição de interpretar o Brasil -projeto que desapareceu da literatura brasileira- e também com uma vontade de intervenção política.

"Quarup", sua obra mais famosa, conta a história de um padre que sonha com uma sociedade igualitária -e que no fim acaba aderindo à luta armada. Callado virou o exemplo do intelectual de esquerda engajado (ele chegou a ser preso duas vezes pelos militares).

Nesta quinta, um seminário da Casa de Rui Barbosa, no Rio, às 16h, é parte das comemorações pela data. O debate reunirá o sociólogo José Almino de Alencar e os críticos literários Alcmeno Bastos e Eduardo Jardim. Jardim, aliás, escreve um livro que, em partes, vai traçar uma análise sobre a obra de Callado.

"Mostro como 'Quarup' é um livro tensionado entre um projeto de intervenção e realização de utopias e uma descrença quanto a isso. Ao mesmo tempo que acredita nas utopias, ele via que elas não tinham se realizado", afirma o crítico, que dá importância crucial à cena das saúvas.

Embora o próprio autor achasse "Reflexos do Baile" (1976) seu melhor livro, Jardim argumenta que seu trabalho anterior parece uma preparação para "Quarup" e o posterior, uma volta às questões que já estavam no livro mais famoso.

Em fevereiro, a Universidade Oxford, no Reino Unido, realiza um simpósio sobre o Brasil -e terá um dia dedicado a Callado, que trabalhou na BBC no país. Um documentário sobre o escritor, de Emília Silveira, também deve sair no segundo semestre.

O trabalho jornalístico do autor, que foi colunista da Folha nos anos 1990, também será lembrado em seu centenário. Callado foi autor de reportagens como "Esqueleto na Lagoa Verde" e "Tempos de Arraes". Mesmo quando já era um escritor conhecido, continuou seu trabalho na imprensa.

Sua viúva, a jornalista Ana Arruda Callado, prepara uma edição de suas crônicas políticas na revista "Istoé", de 1978 e 1981.

"Ele morreu numa tristeza medonha com o Brasil. A última entrevista dele [à Folha, dois dias antes de morrer, em janeiro de 1997] é um horror", diz Ana.

A última entrevista à qual ela se refere é muito significativa. É nela que Callado diz, entre outras coisas, não acreditar mais que a literatura possa mudar o mundo.

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Apesar de ligada de forma profunda ao momento em que foi escrita, a obra do autor segue atual. É o que defende o professor de literatura comparada da Uerj João Cezar de Castro Rocha, que escreveu o texto crítico para acompanhar as edições do teatro de Callado, editado pela Record junto ao resto de sua obra.

"O que se mantem atual é o pensamento dele sobre o país. Ninguém mais escreve romance para interpretar o Brasil. A obra do Callado é uma reflexão poderosa sobre a violência que constitui a civilização brasileira. E essa violência se mantém sob formas diversas", diz.


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