Um dos mais importantes grupos teatrais do país, o Galpão reafirma, completando 34 anos, sua jovialidade com a peça "Nós". Sem abrir mão das raízes no teatro popular e de rua, a trupe mineira se desafiou a um projeto mais "contemporâneo", tanto na linguagem cênica como na proposta de abordar de frente questões da atualidade, como democracia em tempos de intolerância, violência generalizada e crise da esquerda.
É quase impossível não associar com o afastamento de Dilma Rousseff um dos momentos mais angustiantes do espetáculo, quando da expulsão de cena, à base de sopapos e pontapés, da personagem de Teuda Bara. O grupo nega que essa analogia seja intencional, até porque a concepção de "Nós", entre fins de 2015 e março deste ano, seria anterior ao impeachment. É verdade que a crise já estava no ar, mas a cena é "política" num sentido mais amplo.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Da esquerda para a direita, os atores Teuda Bara, Chico Pelúcio, Paulo André, Júlio Maciel, Eduardo Moreira, Antonio Edson e Lydia Del Picchia em cena de 'Nós', nova montagem do Grupo Galpão |
Fala da ambiguidade de nossa dimensão coletiva, que pode ser espaço de festa, de confraternização, mas também de poder e exclusão. Teuda, 75, é a alma da peça, dando show de vitalidade e carisma, mas brinca em cena com a possível rejeição de alguém de sua idade pela família ou pelo mercado de trabalho.
O diretor Marcio Abreu (convidado para este trabalho) pediu de cada ator uma espécie de manifesto em que falasse dos seus fantasmas, do mal-estar, de como se sentem numa realidade cravejada de "nós", num dos sentidos de amarras, impasses. Mas "nós" denota também pertencimento coletivo. As improvisações em que se baseia o texto foram alinhavadas pela ideia geral de uma refeição pública, uma "última sopa" (termo que parece brincar com a "last supper", Última Ceia em inglês), que os personagens, sem identidade definida, preparam ao longo da peça e partilham com a plateia.
A ideia de comunhão é indicada já no início, com a entrada em cena de Teuda entoando os versos "comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar", tomados do samba "Lama", antigo sucesso de Paulo Marques e Ailce Chaves.
Cabe advertir ao espectador que ficar nas arquibancadas junto ao palco: será quase impossível não se banhar dos líquidos que os convivas espalham num dado momento do "diálogo" absurdo em torno de um menino negro e pobre vítima de violência policial.
Outros temas mencionados são a tragédia de Mariana, o terrorismo fanático e a sensação de impotência perante essas avalanches.
Mas não são conversas que evoluam rumo a conclusões claras. São mais uma sinfonia repetitiva de aforismos ou discursos da vida cotidiana, num clima que se alterna o festivo e melancólico.
Outro destaque é o belíssimo arranjo polifônico para a "Balada do Lado sem Luz", de Gilberto Gil, outro momento que salienta a dimensão mais performática da peça.
O Teatro do Sesc Consolação foi adaptado para permitir que parte da plateia pudesse ficar no palco, em assentos nas laterais. Cria-se um ambiente de arena que traduz o que há de mais visceralmente político em "Nós": mais que a denúncia panfletária, o convite a uma nova proximidade, o afeto desatador das amarras, o ritual de comer e comemorar junto (vide a "balada" em que o espetáculo termina), a quebra de barreiras, a começar das que separam público e atores.