Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Brautigan narra com inocência pós-utopia lisérgica absurda

euMORTE é, talvez, um lugar em que a utopia hippie se torna uma distopia futurista; misto de fracasso do amor livre e do anti-intelectualismo beat com efeito irreversível de algum psicotrópico desconhecido, neste caso provavelmente o próprio "Açúcar de Melancia", que dá título ao livro de Richard Brautigan.

Em inglês, o termo é "iDEATH" que, como esclarece Joca Reiners Terron no posfácio à sua tradução, pode significar a morte do eu ou a morte da individualidade. Já em português, a expressão soa mais exclusivamente tétrica, tingindo de um horror sutil a vida supostamente idílica dessa Califórnia mítica e mágica descrita no livro.

Ali, perto de euMORTE, numa cabana, mora o narrador sem nome definido, que conta sua história feita de açúcar de melancia, permitindo que todos viajem na velocidade dos sonhos. Lá, as lamparinas são regadas a óleo de melantruta, os rios podem ter 1 cm de largura, há enormes estátuas de legumes e os antagonistas são a gangue de naFERVURA, bêbados de um destilado feito em Obras Esquecidas e que querem de volta o tempo dos tigres, assassinos dos pais do narrador.

Monier/Rue des Archives/Latinstock
L' ecrivain americain Richard Brautigan (1935-1984) american author Richard Brautigan Foto:Monier/Rue des Archives/Latinstock
O romancista americano Richard Brautigan (1935-1984)

A trama lisérgica e absurda, entretanto, é narrada num tal grau de inocência e tautologia –"O vento parou de súbito e Pauline disse: –O que foi isso? –Foi o vento."– que, depois de algumas páginas, tudo soa possível, como se o leitor estivesse conversando com uma criança.

E o que seria impensável passa a ganhar contorno de pura imanência: "Caminhamos de volta até euMORTE de mãos dadas. Mãos dadas são coisas muito especiais (...)" ou "O cordeiro se sentou em meio às flores –disse ela. –O cordeiro estava numa boa".

Mas algo está sempre rondando o aparente equilíbrio: os tigres, num passado recente, comiam as pessoas; a morte está em todos os cantos, em túmulos brilhantes sob os olhares das trutas; Margaret, a ex-namorada do narrador, vive reaparecendo, assustadora, e Charly, o líder de euMORTE, parece capaz de qualquer coisa para se livrar de naFERVURA. E o final terrível confirma isso, como anunciava uma sombra nervosa, sob a linguagem aparentemente pueril.

Açúcar de Melancia
Richard Brautigan
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Richard Brautigan, autor que chegou a vender 2 milhões de cópias, com o livro "Pescar Truta na América", era uma espécie de poeta beat bissexto. Diagnosticado com esquizofrenia, internado e tratado com eletrochoques, alcoólatra, abandonado pela mulher e, como também conta o posfácio, pelos próprios parceiros de geração, sua obra pende para "um surrealismo norte-americano, fortemente embebido de simbologia geográfica e histórica do país, uma variação zen-budista, meio bêbada de bourbon, do transcendentalismo do século 19."

O leitor desse futuro em que estamos agora, olhando para o aparentemente distante passado em que ainda restava algum espaço para a inocência, sente-se entre abandonado e saudoso. Como se estivéssemos na pós-utopia que, no livro, parece tão absurda. Prova de que aquela inocência era mais esperta do que pode soar.

AÇÚCAR DE MELANCIA
AUTOR Richard Brautigan
TRADUÇÃO Joca Reiners Terron
EDITORA José Olympio
QUANTO R$ 34,90 (240 págs.)

NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Írisz - As Orquídeas" (Companhia das Letras)


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