Folha de S. Paulo


Crítica

Biografia e ficção de Carrère se entrelaçam estranhamente

O acaso permitiu que a biografia de Philip K. Dick (1928-1982), estreia no romance de não ficção de Emmanuel Carrère, seja publicada aqui ao mesmo tempo que o último, "O Reino". Se o primeiro título não fosse lembrado com frequência pelo autor no segundo, o fato não teria relevância. Contudo, as existências do mestre da ficção científica e as de são Paulo e são Lucas, pregadores das origens do cristianismo, ganham contornos estranhamente afins em ambos os livros.

Divulgação
O escritor americano de ficção científica Philip K. Dick
O escritor americano Philip K. Dick, que foi biografado por Carrère

"O Reino" principia pelo episódio de devoção vivido por Carrère de 1991 a 1993, ao atravessar um momento de crise pessoal. Instigado pela madrinha, poeta católica, ele passou a estudar os Evangelhos. Bloqueado para a escrita de ficção, Carrère arranjou um contrato para escrever a biografia de Dick, de cuja obra era fã.

Se idas e vindas das primeiras cem páginas de "O Reino" são essenciais para o autor elaborar sua receita, que mescla vida íntima com objeto de pesquisa, também são um obstáculo para o leitor. A exaustiva rememoração das causas que levam um sujeito inteligente e racional a crer "num negócio tão maluco como a religião cristã, um negócio exatamente do mesmo gênero que a mitologia grega ou os contos de fadas" cansam qualquer cristão, além de cheirarem a autoengano.

Dick, que Carrère considera o "Dostoiévski do nosso tempo", teve sua vida comprometida pelos casamentos fracassados e pelo abuso de drogas. A paranoia advinda dos excessos somada à constante vigia a que foi submetido pelo FBI desde os anos 1950 (em decorrência de ser casado com uma comunista), levou-o ao misticismo bizarro dos últimos dias, nos quais anteviu o Juízo Final, falou em línguas que desconhecia e diagnosticou a doença fatal do filho.

Milagres? A partir da biografia do carismático são Paulo, "O Reino" decola. Descrito quase como um líder de gangue dos anos 50 DC, o antigo caçador de cristãos recebe tratamento de profeta e apóstata. É aí que Carrère confirma seu melhor livro até agora, pois ninguém resiste a um bom apocalipse.

EU ESTOU VIVO E VOCÊS ESTÃO MORTOS - A VIDA DE PHILIP K. DICK
AUTOR Emmanuel Carrère
TRADUÇÃO Daniel Lühmann
EDITORA Aleph
QUANTO: R$ 49,90 (360 págs.)

O REINO
AUTOR Emmanuel Carrère
TRADUÇÃO André Telles
EDITORA Alfaguara
QUANTO: R$ 54,90 (462 PÁGS.)


Endereço da página:

Links no texto: