Folha de S. Paulo


Obras sobre migrações são estética apropriada para mundo em transe

Num voo para Sydney, o artista colombiano Oscar Murillo teve um acesso de raiva e destruiu seu passaporte, rasgando as páginas do documento e depois jogando seus restos no vaso do banheiro do avião. O que sobrou das folhas foi pulverizado no espaço quando ele deu a descarga.

Murillo foi barrado no aeroporto e ficou dois dias preso até que autoridades australianas comprovassem sua identidade. Acabou deportado para Cingapura e passou por Barcelona e Madri até voltar à sua Bogotá natal.
Queridinho do mercado global das artes visuais, com telas vendidas por mais de R$ 1 milhão, o artista tinha dois passaportes –um britânico e um colombiano– até esse episódio de semanas atrás. Ao destruir o documento europeu, quis fazer um pronunciamento performático sobre o que entende por condição de colonialismo latente, em que países periféricos são explorados por potências.

Dias depois, num debate em Hong Kong, ilustrou essa ideia comparando o Ocidente a "um grande pênis sedento, pronto para penetrar o resto do mundo como vem fazendo há 500 anos". Seu chilique aéreo mais as declarações caíram como piada no meio artístico.

Diante da crise dos refugiados que assola a Europa, da xenofobia nos discursos de Donald Trump em sua tentativa de chegar à Casa Branca e daqueles que sonham com o refúgio em algum país rico, Murillo vem sendo ridicularizado nas redes sociais ao posar de vítima de um drama que não conhece nem nunca viveu.

Vazio ou não, seu gesto é o mais midiático a ilustrar um fenômeno do mundo globalizado, em que artistas são desenraizados, moram entre um lugar e outro e circulam pelas capitais do planeta como commodities sujeitas à especulação e à lei de oferta e demanda.

ESTEREÓTIPOS RACIAIS

Paulo Nazareth, um brasileiro, ganhou fama no plano global ao expor primeiro nos Estados Unidos, onde a crítica o lançou como "novo jovem artista negro". Numa feira em Miami, Nazareth segurava cartazes com dizeres sobre raça e etnia diante de uma Kombi cheia de bananas. Ele vestia sandálias Havaianas puídas e tinha uma cabeleira afro, reforçando estereótipos raciais.

Exótico e sujo, Nazareth contava que tinha caminhado de Minas Gerais até o balneário americano, jornada que ia da pobreza ao luxo. Depois, diz ter ido a pé do sul da África até Lyon, na França, onde participou de bienal.

Num mundo de fronteiras diluídas para poucos privilegiados e fechadas para muitos, atravessar essas barreiras políticas vem se tornando um ato estético carregado de significado. É impossível saber se Nazareth de fato andou tudo o que diz ter andado, mas o mito engendrado por ele também é lido como obra de arte.

Indo além da anedota, a artista marroquina Bouchra Khalili fez uma série de entrevistas com imigrantes ilegais na Europa. Não mostra seus rostos, só suas mãos, que desenham sobre mapas do mundo. Ali estão rotas traçadas desde o norte da África ou do Oriente Médio, linhas que indicam a travessia do Mediterrâneo ao som de relatos de como chegaram a cidades como Paris, Londres ou Roma.

No caminho, alguns perderam amigos e parentes, outros foram detidos ou sofreram todo tipo de abuso. Outros ainda se envolveram com o crime, se prostituíram, tudo em nome de uma vida melhor.

Vi os trabalhos de Khalili pela primeira vez em Charjah, nos Emirados Árabes Unidos. Depois em Paris e, por último, em Nova York, onde esses filmes agora são mostrados numa das alas do MoMA. Em arquivos digitais de vídeo, sua obra sobre a migração forçada se espalha pelo mundo cruzando fronteiras sem esforço, transmitida a todo canto do planeta via satélite.

Essa circulação na velocidade da luz tanto de artistas quanto de suas obras espelha a transmissão instantânea de dinheiro por um mundo "hiperfinanceirizado", valores quase virtuais que inflam ou desidratam contas bancárias na fuga de bolsas em queda ou atraídos por altas repentinas.

No comando de instituições de arte, banqueiros e agentes do mercado financeiro, hoje a elite dos colecionadores, estruturam os gostos e fazem da super-exposição desses trabalhos que denunciam os horrores do mundo quase uma operação de marketing, por mais que muitas dessas obras tenham peso e relevância.

Nesse sentido, o desenraizamento de obras e artistas reflete a total extinção de barreiras para a circulação de fundos. A arte das migrações, exposta ao mesmo tempo em Oslo e São Paulo, Acra e Dubai, Miami e Moscou, aos poucos vai se firmando como a estética de um planeta em transe, com barreiras políticas que se tornam obsoletas diante dos fluxos e contrafluxos do capital e de quem corre atrás dele.

Outra artista marcada por fronteiras –essas intransponíveis, erguidas pela guerra–, a libanesa Mona Hatoum fez de sua obra um arsenal de recordações violentas, embora pareçam dóceis.

Um tapete persa tem buracos e partes mais gastas no formato de um mapa do mundo, sinal de que ela já não pode ou não tem motivos para voltar para o lugar de onde saiu.

Uma luminária com recortes projeta sombras nas paredes, como o lustre do quarto de um bebê, mas as silhuetas são de soldados armados.

Nos últimos anos, Hatoum se tornou nome incontornável no cenário artístico mundial. Suas obras sobre perda e separação, a exemplo dos vídeos de Khalili, são montadas e remontadas globo afora. Estão em São Paulo, Madri, Londres, às vezes ao mesmo tempo. Desde que uma guerra no Líbano a fez deixar o país, ela nunca mais voltou a viver lá. Seu ateliê fica no Reino Unido.

Fronteiras do Pensamento


Endereço da página:

Links no texto: