Folha de S. Paulo


análise

Ninguém encarnou o espírito camicase do rock como Lemmy Kilmister

É o fim de uma era. Ian "Lemmy" Kilmister era um dos últimos dinossauros do rock, um sobrevivente da era "sex, drugs and rock and roll" que há anos vagava por um mundo de Bonos, Coldplays, rockstars bonzinhos e saladas de tofu.

Ninguém —nem Ozzy, Jerry lee Lewis ou Keith Richards— encarnou o espírito camicase do rock como ele, por tanto tempo e com tanta intensidade. Lemmy nunca diminuiu o ritmo. Dos zero aos 70, viveu cada dia a mil por hora, como se fosse o último. Sua lenda permanecerá, não só pelos discos extraordinários que gravou com o Motorhead, como pelas histórias escabrosas e hilariantes que colecionou em sua passagem pela Terra.

Lemmy viu os Beatles no Cavern Club, foi "roadie" de Jimi Hendrix e fez parte do Hawkwind, uma banda seminal do rock pesado e psicodélico, conhecida pelo anarquismo de seus shows e porralouquice de seus integrantes. O Hawkwind botava ácido lisérgico na bebida servida em seus concertos, para que o público entrasse na mesma sintonia da banda. E Lemmy conseguiu ser expulso do Hawkwind por mau comportamento.

Ele ficou apenas três anos no grupo (de 1972 a 1975), mas suas histórias de excessos são lendárias. Lemmy diz que morava num quarto com 36 pessoas, que teve de ser carregado ao palco várias vezes por estar chapado ("Eles me botavam no palco e diziam em que direção estava a plateia, para que eu não tocasse de costas para o público"), e que, ao ser abordado pela polícia em um carro, engoliu 50 pílulas de anfetamina de uma só vez.

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Em 2002, Lemmy lançou sua autobiografia, "White Line Fever", um relato dos mais engraçados e chocantes. Como essa criatura sobreviveu ao rock é um milagre. Por mais de quatro décadas, sua dieta consistia em uma garrafa de Jack Daniel's por dia (não deve ser à toa que Lemmy morreu apenas quatro meses depois de anunciar que, por razões de saúde, trocara o uísque por vodca com suco de laranja).

Em 1980, conta Lemmy, ele procurou um médico para trocar de sangue. "Parecia uma boa ideia, você recebe sangue fresquinho e não precisa passar pelo doloroso processo de desintoxicação". Mas o médico não tinha boas notícias para Lemmy. Depois de fazer alguns exames, o doutor disse: "Senhor Kilmister, sinto dizer que sangue puro vai matá-lo. O senhor não tem mais sangue humano. E não pode doar sangue também. O senhor é tão tóxico que, se doar sangue para uma pessoa saudável, ela morreria na hora".

Depois de sua demissão do Hawkwind, em 1975, Lemmy fundou o Motorhead. O nome é uma gíria para usuários de anfetaminas, o estimulante predileto de Lemmy. "A verdade é que, se você está numa banda, precisa usar alguma coisa ou não consegue aguentar o ritmo", escreveu Lemmy em "White Line Fever". "Ninguém aguenta fazer uma turnê de três meses sem tomar algo. Não me interessa o que as pessoas dizem —mantenha-se saudável, coma verduras, beba suco natural— fodam-se! Não é verdade! Não me interessa se você come 200 alcachofras por dia, você não vai aguentar uma turnê de três meses fazendo um show por dia."

A filosofia de Lemmy sempre foi a de viver o mais intensamente possível sem ligar para as consequências. Ele é de uma época em que todo sexo era seguro e fazer orgias com fãs era corriqueiro. "Dizem que já fiz sexo com 2.000 mulheres, mas acho que esse número pode estar um pouco inflacionado. Mas foram mais de mil, com certeza". Quando uma empresa de brinquedos fez um boneco seu, Lemmy reclamou que o brinquedo não tinha pênis: "Como é que ele vai se divertir?".

Talvez nenhum outro astro do rock tenha sido idolatrado por tantas tribos diferentes. Hippies, punks, metaleiros, góticos, rockabillies, todo mundo amava Lemmy, o tiozão engraçado e carismático que, só pelo fato de estar vivo, mostrava que o rock também estava. De certa forma, Lemmy era o rock. Não é à toa que ele sempre abria os shows com uma frase simples e direta como a música que amava: "Nós somos o Motorhead e tocamos rock and roll".


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