No final dos anos 1980, surgia na recém-nascida cena do rap paulistano o grupo Racionais MC's, liderado por Mano Brown e formado por KL Jay, Ice Blue e Edi Rock.
Criado na estação São Bento do metrô, onde desde 1985 aconteciam encontros de b-boys (dançarinos de break dance) e rappers, o quarteto logo tomou a frente do rap nacional com músicas como "Pânico na Zona Sul", "Negro Drama" e "Diário de um Detento". Lá permaneceu soberano durante 25 anos.
"Por todo esse tempo, era difícil fazer rap sem olhar para os Racionais", afirma o músico e antropólogo Ricardo Teperman, autor do livro "Se Liga no Som - As Transformações do Rap no Brasil". "Mas esse ciclo está se encerrando."
Para ele, uma nova geração de rappers, que tem no também paulistano Emicida seu principal símbolo, aliada a um novo momento do país e da indústria musical, tiraram dos Racionais o papel central que ocupavam há tantos anos.
"A relação dessa geração do milênio com a mídia e o mercado é mais desembaraçada", diz. Se no início dos Racionais o grupo evitava casas de shows de "playboy", gravava discos independentes e tinha uma postura de "nós contra eles", os novos artistas têm mais jogo de cintura para lidar com a indústria e a imprensa.
"O passo que Emicida e Criolo estão tentando dar é ousado e ambicioso", diz Teperman. "É tentar não perder a contundência na crítica, mas entrar no mercado, que já não é mais o das grandes gravadoras."
O risco, segundo o pesquisador, é o de deixar de lado o viés político que Mano Brown e seus companheiros instilaram no gênero e que se tornou marca do grupo, e cuja epítome é "Diário de um Detento", de 1998, faixa sobre o massacre do Carandiru –em que 111 presos foram mortos pela polícia durante uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo.
As letras da banda, a que se dedica exclusivamente um dos capítulos do livro, eram algo inédito na música do país.
"A música brasileira tem uma tradição de 'pacto social', de tentar conciliar as classes. Os Racionais chegaram dizendo 'nós quem, cara pálida?'", diz Teperman. "Eles têm um recorte claro de classe e de raça, não têm pretensão de falar com todos os brasileiros."
Na nova geração, isso muda, porque há uma quebra no paradigma de vida dos rappers. "Nessas três décadas de redemocratização, houve um aumento, principalmente, de escolaridade e acesso a bens de consumo, potencializado pela internet banda larga", diz o autor.
Assim, enquanto nenhum dos quatro Racionais chegou a terminar o colegial, Emicida, que começou a carreira no início dos anos 2000, nas batalhas de rap "freestyle" no metrô Santa Cruz, tem diploma de curso técnico de design.
Ainda assim, músicas como "Boa Esperança", em que o rapper canta sobre uma revolta de empregados domésticos, parecem dar pista de que essa veia politizada não deve se extinguir tão cedo. "Algumas músicas têm rimas comparáveis com as do Racionais, em qualidade e militância."
A popularização da internet, que facilitou a difusão das músicas desses artistas que surgiam, e a decadência das grandes gravadoras também tiveram papéis importantes nessa mudança do rap.
"Há até uma inversão. Nesse sentido, Os Racionais é que passam a se inspirar no Emicida e no Criolo." Os veteranos, que ficaram de 2002 até 2014 sem lançar músicas inéditas, são geridos desde 2012 pela empresária Elaine Dias, mulher de Brown.
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"Foi ela quem criou o site da banda, contratou assessoria de imprensa. Nunca tiveram isso", afirma Teperman. "Eles ainda são mais cautelosos do que o Criolo, por exemplo, que faz várias parcerias com artistas de MPB, com empresas, mas há um aceno de que eles estão tentando se basear nesse novo modelo", conclui.
SE LIGA NO SOM - AS TRANSFORMAÇÕES DO RAP NO BRASIL
AUTOR Ricardo Teperman
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 29,90 (184 págs.)
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Veja 14 músicas que marcaram a história do rap
1979 - RAPPER'S DELIGHT - Sugar Hill Gang
Uma das primeiras músicas consideradas rap, foi gravada em Nova York por três MCs reunidos pelos produtores Sylvia e Joe Robinson
1988 - CORPO FECHADO - Thaíde & DJ Hum
Parte da coletânea "Hip Hop Cultura de Rua", se tornou o carro-chefe do LP, que vendeu mais de 60 mil cópias
1989 - FIGHT THE POWER - Public Enemy
Música emblemática do grupo norte-americano, foi composta como trilha sonora para o filme "Faça a Coisa Certa"
1990 - PÂNICO NA ZONA SUL - Racionais MC's
Faixa do primeiro disco do grupo, "Holocausto Urbano", mostra o viés político que marcaria a carreira da banda
1990 - ICE ICE BABY - Vanilla Ice
No mesmo ano que o superpolitizado álbum dos Racionais sai por aqui, nos EUA um rapper branco leva o gênero pela primeira vez ao topo da parada da "Billboard", causando polêmica
1993 - LÔRABÚRRA - Gabriel, O Pensador
A polêmica da apropriação do rap por cantores brancos chega ao Brasil com o primeiro álbum de Gabriel, o Pensador, que estudava na PUC-Rio, faculdade da elite carioca, quando compôs as músicas
1997 - DIÁRIO DE UM DETENTO - Racionais MC's
Do álbum "Sobrevivendo no Inferno", a música fala sobre o massacre do Carandiru, em que 111 presos foram mortos pela polícia após rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo
1999 - ISSO AQUI É UMA GUERRA - Facção Central
Com o clipe lançado em 2000, os paulistanos do Facção Central se viram no meio de uma polêmica: o vídeo foi impedido de circular após o grupo ser acusado de fazer apologia ao crime
2000 - SOLDADO DO MORRO - MV Bill
Foi com essa música que o principal rapper carioca ganhou quatro prêmios Hútuz, o maior da cena rap
2001 - RAP É COMPROMISSO - Sabotage
Faixa título do único álbum solo do rapper, que vendeu mais de 1 milhão de cópias
2002 - LOSE YOURSELF - Eminem
Lançada em 2002 como trilha sonora do filme do rapper, "8 Mile", que ajudou a popularizar as batalhas de MCs no Brasil
2008 - TRIUNFO - Emicida
Primeiro single do rapper paulistano, teve 600 mil visualizações em seu videoclipe
2011 - BOGOTÁ - Criolo Doido
Foi com "Nó na Orelha", álbum de 2011, que o rapper se alçou à fama com músicas que misturam rap a afrobeat, reggae e samba
2015 - BOA ESPERANÇA - Emicida
Do segundo álbum de estúdio do rapper, "Boa Esperança" teve clipe dirigido por João Wainer ("Pixo") e Katia Lund ("Cidade de Deus"), que retrata a revolta de empregados domésticos contra seus patrões