Folha de S. Paulo


Filme argentino que superou bilheteria de 'Relatos Selvagens' briga por Leão de Ouro

Um casarão cinza de dois andares virou atração nos finais de semana ensolarados de San Isidro, na Grande Buenos Aires. O sobrado, em uma zona endinheirada perto da capital, foi o cenário de um dos episódios mais chocantes da crônica policial argentina.

A casa foi cativeiro de três vizinhos tornados reféns da família Puccio nos anos 1980.Os sequestradores foram o pai, Arquímedes, e seus filhos, Alejandro e Daniel.

A história acaba de chegar aos cinemas argentinos no filme "O Clã", que se converteu na maior bilheteria da história do país, superando "Relatos Selvagens" e "O Segredo dos seus Olhos". Nos primeiros dez dias de exibição, foi visto por 1,5 milhão de pessoas.

Neste domingo (6), o longa será exibido no Festival de Veneza, concorrendo ao Leão de Ouro. A previsão é que estreie no Brasil no fim do ano.

É o primeiro longa-metragem baseado em um caso real do diretor Pablo Trapero (de "Elefante Branco"), que fez um trabalho de investigação à moda antiga para levar a história ao cinema.

"Conversei com juízes, vizinhos e familiares das vítimas para reconstituir a personalidade de cada um da família Puccio e também para encontrar pistas sobre o que acontecia dentro da casa", disse o diretor à Folha.

Em uma das primeiras cenas, a família se prepara para jantar. A câmera segue o pai enquanto ele sobe as escadas e chama a caçula no quarto. Abre uma porta, e Arquímedes revela que há um homem acorrentado à banheira, com um capuz na cabeça. A primeira vítima dos Puccio.

"É um filme que fala de um período muito duro da história argentina, a saída da ditadura, a guerra das Malvinas. Arquímedes é um sintoma dessa sociedade", diz.

Autor de uma das últimas entrevistas com o patriarca, morto em 2013 após deixar a cadeia, o jornalista Rodolfo Palacios afirma que Arquímedes já atuava em atos ilícitos antes e durante a ditadura (1976-1983)."Ele sempre foi uma pessoa ligada ao poder, à política e ao delito", conta.

O filme mostra a aproximação de Puccio a militares que ainda conservavam poder na recente democracia.

Palacios acaba de lançar o livro "El Clan" (Planeta) e é consultor em uma série de TV que estreia na próxima semana na Argentina.

"Arquímedes era um psicopata de livro, um manipulador sem culpa. Até a morte, negou responsabilidade nos sequestros e não teve problemas em incriminar sua família", diz Palacios.

O filho Alejandro tentou se matar várias vezes até que, em liberdade condicional, morreu em 2008. Daniel Maguila fugiu após dois anos na cadeia e, dizem na Argentina, morou em Porto Alegre.

A Justiça nunca conseguiu provar se as duas filhas, que viviam na casa, sabiam dos sequestros. A mãe foi liberada após poucos anos de cadeia. Epifania Puccio ainda é proprietária da casa, hoje alugada para um morador que tenta evitar o assédio.

"Imagina quantas pessoas tocam a campainha todos os dias? Ele não atende mais.", diz Rodrigo Hairabedian, dono da mercearia em frente ao casarão. "Ele me disse que, quando alugou, não sabia que era a casa dos Puccio. Quem sabe, não alugaria".

Morador de San Isidro desde criança, Rodrigo conta que se lembra de Arquímedes varrendo a calçada de madrugada. "Dizem que era para despistar os gritos aí dentro", conta. "Todos aqui o conheciam, conversavam, liam jornal com ele. E ele sequestrava os vizinhos!", indigna-se.

Só sete anos depois da prisão dos Puccio, os amigos de rúgbi de Alejandro se convenceram de que ele estava envolvido no caso.

"É uma realidade que ocorreu, que não se pode apagar. Nós nos sentimos traídos e tentamos digerir essa história", diz Gabriel Travaglini, que jogou com Alejandro no Clube Atlético de San Isidro.


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