Folha de S. Paulo


Filósofo Francisco Bosco promete criatividade para resgatar Funarte

Recém-empossado na presidência da Funarte, o órgão do Ministério da Cultura de fomento às artes, o filósofo e ensaísta carioca Francisco Bosco, 38, sabe que assumiu uma instituição em crise.

O orçamento e o número de funcionários encolhem a cada ano e ela "perdeu capacidade de produzir acontecimentos relevantes para a cultura", segundo disse o presidente em entrevista à Folha, em seu gabinete, no Rio.

O que o levou a aceitar o convite do ministro Juca Ferreira foi a oportunidade "de contribuir para uma gestão orientada por valores de ousadia, experimentação e aprofundamento da experiência democrática".

Ricardo Borges/Folhapress
O novo presidente da Funarte, Francisco Bosco
O novo presidente da Funarte, Francisco Bosco

Para ele, o MinC é um dos poucos ministérios do governo Dilma capazes de implementar uma agenda de esquerda. Exemplo disso é o maior projeto que o próprio Bosco conduzirá neste ano, a Comissão Nacional das Artes.

Encarregada de rodar os 27 Estados, de abril a dezembro, para fazer "um grande diagnóstico de demandas e sugestões" a partir de diálogos com os artistas, a comissão vai repensar toda a estrutura e a política das artes no país, incluindo a própria existência da Funarte.

Paralelamente, Bosco tentará imprimir sua marca no órgão que preside traçando novas ações que façam a Funarte voltar a ter relevância.

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Folha - Como funcionará a Comissão Nacional das Artes?
A comissão vai percorrer os 27 Estados escutando representantes de todas as linguagem que a Funarte abarca [música, artes visuais, teatro, circo, literatura e dança]. Cada linguagem terá o que chamamos de um condutor de processo, alguém que vai percorrer os Estados e, em cada um, fazer um chamamento público para uma grande roda de conversa.

Esse condutor fará uma leitura da situação, das demandas, precariedades e sugestões de políticas públicas para aquela área.

Serão feitos relatórios parciais e um documento final, em dezembro, que servirá de base para a formulação de políticas e para um redesenho da Funarte. Será contratada uma consultoria externa para elaborar políticas públicas a partir do relatório. Elas devem começar a ser implementadas a partir do segundo semestre de 2016.

A própria comissão tem uma dimensão presencial, mas tem também uma narrativa simultânea que vai se dar numa plataforma digital colaborativa, como o Marco Civil. Ainda não temos a arquitetura digital elaborada em detalhes, mas toda a discussão vai estar disponível o tempo todo.

Até onde pode ir esse redesenho?
A comissão fará um grande diagnóstico. Depois, veremos o que fazer para atender as demandas. Reestrutura-se a Funarte? Extingue-se a Funarte e criam-se agências separadas? Não se sabe.

Diante de realidades diferentes você tem desenhos institucionais diferentes para atender a essas necessidades. Outros setores reivindicam, a partir do case que é a Ancine, a criação de agências próprias.

A música, por exemplo. Ela é, talvez, a principal linguagem artística da cultura brasileira. Reivindica com razão uma agência que dê conta de sua complexidade e exuberância. E o que temos? O Cemus [Centro da Música, parte da Funarte]. É ridículo.

Enquanto a comissão não conclui o trabalho, o que você pretende fazer com a Funarte?
Uma diretriz vai ser tentar fazer com que a instituição entre na discussão cultural, não só no Rio, mas também numa esfera maior. A Funarte está afastada da cultura. Temos um departamento de pesquisa, o Cedoc, que tem documentos muito relevantes e é pouco visitado. Temos várias ações de fomento, mas o resultado delas não está aparecendo para a cultura.

A Funarte não tem sido capaz de produzir pautas, não sai nos jornais.

Ninguém visita nossa livraria. A sala Sidney Miller [no Rio] não é um espaço relevante na vida musical da cidade. Ninguém faz ideia do que seja a Casa Paschoal Carlos Magno [teatro da Funarte no Rio].

Os processos estão sendo feitos, mas mesmo o que dá para fazer não está produzindo impacto na cultura. Há um déficit de formulação na casa, de imaginação na criação de políticas públicas. Não basta continuar tocando editais e prêmios, você tem que agir.

Por exemplo, foi aqui que surgiu o ciclo que hoje se chama Mutações [ciclo de debates], do Adauto Novaes. Ele era pesquisador da Funarte. Contratou conferencistas de fora da instituição, a Funarte pagava as pesquisas deles.

Depois a Funarte fez parcerias com a [editora] Cia. das Letras e publicou livros [que resultaram dessa pesquisa] que circulam até hoje.

É uma iniciativa que surgiu na Funarte e que teve impacto cultural. No campo das artes visuais também houve iniciativas importantes, como a coleção [de livros] ABC.

Se você conversa com artistas do Rio que hoje têm seus 50 anos, vê que eles eram habitués da nossa livraria. Essa coleção foi importante para a formação deles. Esse tipo de ação exige imaginação ousada e inventiva. Isso eu quero fazer.

Você disse que quer atrair a iniciativa privada. Como?
Temos quase 20 equipamentos culturais. Devido às nossas restrições de recursos, não estão nem ocupados. Vivemos o pior dos mundos, pois pagamos o custeio e não oferecemos programação à sociedade.

Diante de um quadro como esse, pensamos numa parceria com iniciativa privada. Ela pode ser no modelo OS [Organizações Sociais, entidades privadas sem fins lucrativos que administram equipamentos públicos].

A crítica que se faz a esse modelo é que ele seria a lógica do privado no público. Mas você pode criar mecanismos via edital que permitam que você negocie essa lógica. Você condiciona a entrega do equipamento a uma série de objetivos que pertencem à lógica pública e que a OS vai ter que cumprir. A crítica simplesmente não é verdade. E a gente não dá conta sozinho.

Qual é a situação orçamentária da Funarte?
A maior parte do que temos para as atividades de fomento vem do Fundo Nacional de Cultura. O FNC é um recurso que não pertence à Funarte, é relacionado ao MinC.

O dinheiro de que a casa dispõe hoje responde por uma parte muito pequena das ações finalísticas [prêmios, fomento]. Está muito empenhado no meio: pessoal, estrutura etc.

O que sobra para atividades finalísticas é muito pouco. Em 2014, [o orçamento da Funarte para atividades de fomento] foi menos de R$19 milhões [sem contar com o FNC].

Neste ano, deve ser menos. Trabalhamos com uma estimativa de contingenciamento de até 30%. Os grandes editais são [financiados com verba] do FNC. Ainda não sei o quanto terei do fundo.

E em termos de servidores?
Temos um déficit de estrutura enorme. No período considerado áureo, no início dos anos 1980, a Funarte tinha mais de 900 funcionários entre servidores e comissionados.

Hoje tem 240 servidores e cerca de 70 cargos comissionados. Quase um terço deles vai entrar em tempo de aposentadoria nos próximos três anos.

O último concurso, para 50 vagas, foi homologado, mas as pessoas não foram convocadas ainda. Ainda não discuti a situação desse concurso específico com o MinC, mas é muito difícil que sejam efetivadas este ano. Não conto com isso.

Por que você aceitou o convite do ministro?
Temos uma piada interna no núcleo estratégico do MinC que diz que ele é uma espécie de Islândia do governo brasileiro.

O nosso governo de esquerda do PT tem mil dificuldades de implementação de uma agenda de esquerda.

Credito essas dificuldades decisivamente a forças que são exteriores às intenções do partido. Mas, no caso da cultura, até por um relativo abandono do conjunto de forças conservadoras que regem a sociedade brasileira, é possível fazer avanços significativos.

Considero uma oportunidade inestimável poder contribuir para uma gestão da coisa pública orientada por esses valores de ousadia, experimentação e aprofundamento da experiência democrática da sociedade brasileira. É isso o MinC conduzido pelo Juca.

Mas as limitações estruturais e financeiras são enormes.
Não se pode ficar só enfatizando o que não se pode fazer. Isso é um vício constitutivo da sociedade brasileira.

Para a construção de uma sociedade é tão importante a dimensão crítica, negativa, quanto a de identificação de realizações. Há uma série de narrativas em curso no MinC que são o que é possível fazer dentro de uma realidade que ultrapassa o âmbito do MinC, que, por definição,não é de responsabilidade dele. Cabe ao MinC fazer o que pode dentro dessa realidade. E cabe à sociedade brasileira identificar também esse processo.

É preciso perceber o conjunto de forças que nela atuam numa complexidade maior.


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