Folha de S. Paulo


Crítica: Presença de Apolo e Hércules dá conotação crítica a poema

Recorrer à mitologia clássica para escrever sobre fenômenos atuais tem um sentido, no mínimo, duplicado. Os mitos gregos não representam mais a si mesmos, como faziam no passado, mas sim alguma crítica, ironia, paródia ou simbolismo.

No poema-romance "Os Velhos Também Querem Viver", de Gonçalo Tavares, Apolo, Hércules e um coro trágico participam ativamente de um drama que se passa em Sarajevo, durante a guerra da década de 1990.

Diante da morte, que veio buscar um habitante da cidade, Admeto, surge Apolo, que intercede e chega a uma negociação: outra pessoa poderá morrer em seu lugar.

O poema segue narrativamente, revelando quem fará e quem não fará o sacrifício no lugar de Admeto. O tom é elegantemente grave e épico e a trama percorre início, meio e fim, com direito até a ingredientes de farsa, como entradas e saídas desencontradas de personagens.

A métrica justa, as rimas estranhas, chegam muitas vezes a lembrar João Cabral: "como se o corpo fosse um território e a definitiva invasão ali estivesse/ com os pés em cima da linha que separa esses dois elementos incompatíveis:/ o corpo vivo e a morte bem redonda".

O coro, constituído de homens e mulheres desmembrados, habitantes de Sarajevo, certamente compõe o melhor personagem do poema.

Mas as perguntas que ficam, para uma leitura mais atenta e para além da beleza do texto, são: por que o uso da mitologia grega? Por que o coro? Por que em Sarajevo?

A guerra, como nunca deixou de ser, ainda encarna o papel de mito. Para quem diz que os mitos acabaram, ela permanece aí para desmenti-los.

Acontece que a guerra contemporânea é mitológica, mas perderam-se, nela, aqueles componentes que costumavam acompanhar a epopeia clássica: os sentidos de honra, palavra, justiça e outros valores do pensamento mítico.

Ausentes estes últimos, o sentido da presença de Apolo e Hércules num poema sobre esse mito decaído contemporâneo, Sarajevo, adquire uma conotação crítica. Creio que a recusa do pai de Admeto em morrer em seu lugar, preferindo a vida que lhe resta, mesmo que pouca, além do uso ocasional de metalinguagem e autoironia, sejam as marcas negadoras do mito antigo, sustentando o recurso a Apolo e a Hércules.

Mesmo assim, essas figuras clássicas ainda não se justificam completamente e o final da trama acentua ainda mais essa dúvida. Afinal, não seriam também o vazio da narrativa contemporânea e as notícias de jornal, como a guerra, a nossa mitologia? Uma mitologia esgarçada, tristemente restrita aos fatos, mas, ainda assim, aquela a que temos direito.

OS VELHOS TAMBÉM QUEREM VIVER
AUTOR Gonçalo M. Tavares
EDITORA Foz
QUANTO R$ 24,90 (88 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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