Folha de S. Paulo


Gonçalo Tavares adapta tragédia grega à Sarajevo da década de 90

Você acabou de levar um tiro e está prestes a morrer. Um deus, no entanto, decide lhe dar uma chance: poderá viver, se encontrar alguém que aceite morrer em seu lugar.

Seu pai, um ancião, se recusa. Sua mulher aceita. Parte desta premissa o trigésimo livro do português Gonçalo M. Tavares, "Os Velhos Também Querem Viver", recém-lançado no Brasil pela editora Foz.

Vencedor de prêmios literários como o Saramago (2005) e o Portugal Telecom (2007 e 2011), Gonçalo, mais uma vez, inventa moda.

Em "Viagem à Índia", de 2010, navegou por Camões, lançando um livro em versos. Agora, parte da tragédia grega "Alceste", de Eurípedes (480 a.C.-406 a.C), para criar uma tragédia contemporânea.

Viagem à Índia
Gonçalo M. Tavares
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"O tom da escrita aproxima os dois livros. Mas não sou um entusiasta dos gêneros literários. Não me interessa a divisão clássica de romance, poesia, conto...", diz Gonçalo à Folha, por telefone, de Lisboa. "Procuro escrever partindo do princípio de que cada livro, de certa maneira, funda o seu próprio gênero literário".

O livreto, de 88 páginas, lê-se de um fôlego só. Narra a história de Admeto, um cidadão de Sarajevo, que, à beira da morte, baleado durante o cerco à cidade pelo exército sérvio (nos anos 1990), recebe um favor do deus Apolo.

A partir daí, o livro mergulha na tragédia que motivou o autor a escrevê-lo, parodiando Eurípedes.

"O cerco à Saravejo foi uma das tragédias mais terríveis da Europa no século 20. Não foi um cerco de um mês, foram cinco anos", comenta Gonçalo. "O que me interessava também era refletir a velhice. Na Europa de hoje, existe uma guerra de gerações. Por conta da crise econômica, o que está implícito neste confronto é que os velhos têm que morrer."

Para Gonçalo, trata-se de uma equação matemática que está, aos poucos, sendo subvertida: "A humanidade e o humanismo não podem dispensar a ideia de que uma vida humana é igual a outra vida humana. Entramos num mundo perigoso quando desequilibramos esta equação".

"Existe um livro do [sociólogo polonês] Zygmunt Bauman em que ele reflete sobre o discurso da associação de médicos nazistas que dizia que um aluno normal custava 400 marcos, um aluno com deficiência leve, 700, um com deficiência grave, 900, e um cego, 1.500. Um não era igual a um. Isto anunciou o extermínio de deficientes, a primeira violência do estado nazi. A história é importante para ficarmos atentos."

MÁQUINA DE ESCREVER

Com 44 anos, 30 livros, traduzido para 45 países, em 30 línguas, o escritor é uma máquina de escrever livros laureados. Segundo o conterrâneo Saramago (1922-2010), será o próximo Nobel da literatura de língua portuguesa.

"Para mim, escrever é orgânico. O verbo escrever é um ato físico, como andar, correr, saltar. É corporal e instintivo. A parte dura do meu trabalho é corrigir e cortar textos. Demoro anos a rever um livro."

Gonçalo nasceu em Angola, em 1970. Filho de pais portugueses, viveu em Luanda até os dois anos, quando a família retornou para a sua aldeia no norte de Portugal.

Na juventude, foi jogador de futebol. Semiprofissional. Quando teve que se definir profissionalmente, aos 18 anos, ficou entre estudar matemática ou seguir a carreira esportiva. E aí resolveu o seguinte: decidiu ler, ler tudo o que encontrasse pela frente. E leu até os 31 anos, quando começou a publicar freneticamente, em 2001.

Sua rotina hoje é de atleta das letras: "Todas as manhãs eu me fecho no meu ateliê, sem internet e sem celular. Fico quatro ou cinco horas concentrado. Depois, saio a andar por Lisboa. Andar é uma forma de escrita. Andar é passar do lado de uma pessoa e observar como franze a sobrancelha, se está tensa ou relaxada, como fala ao telefone. Não conseguiria deixar duas coisas na vida: escrever e andar".


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