Folha de S. Paulo


Recebi um chamado de Deus para viver Martin Luther King, diz ator

Ele engordou 13 kg. Raspou parte da cabeça para fazer recuar a linha do cabelo. Viajou aos recantos do Sul dos Estados Unidos. Mas o essencial na preparação de David Oyelowo para interpretar Martin Luther King em "Selma" (sem previsão no Brasil) foi passar a juventude na Nigéria e no Reino Unido, longe do país que deu origem a revoltas nos anos 1960 contra o racismo.

"Não cresci como muitos negros norte-americanos, ou seja, com o meu tio marchou com ele, meu avô o conhecia, minha avó tinha uma foto com Kennedy, Jesus e King", relata Oyelowo, 38. "Eu não fazia ideia do peso disso."

Segundo o inglês, isso permitiu construir um King sem "pisar demais no acelerador em momentos grandiosos", focando nas facetas de "homem religioso, marido e pai".

Bon Duke/The New York Times
O ator David Oyelowo, que interpreta Martin Luther King no filme 'Selma'
O ator David Oyelowo, que interpreta Martin Luther King no filme 'Selma'

Essa abordagem lateral levou Oyelowo aos holofotes (ele foi indicado ao Globo de Ouro), na primeira grande cinebiografia de uma das maiores figuras do século 20.

Dirigido por Ava DuVernay, "Selma" foca o momento, em 1965, no qual King encarou o presidente Lyndon Johnson por conta do cerceamento dos direitos dos negros e da necessidade de uma lei que lhes garantisse o direito ao voto.

HOMEM COMUM

David Oyelowo parece diferente a cada papel. Neste ano, ele viveu um astronauta em "Interestelar", de Christopher Nolan, e um promotor público moralmente ambíguo em "O Ano Mais Violento", de J. C. Chandor, sobre a Nova York dos anos 1980 que deve estrear no Brasil em 26/2.

Ele pode ser considerado um astro incomum: um ator com cara de homem comum que fala abertamente de sua fé cristã e sobre "o amor de sacrifício", que é a qualidade que mais admira nos outros.

"É algo muito forte chegar à terra do tudo é possível' sem ser sujeitado, como os negros norte-americanos, às mensagens de você não pode, você não tem direito, você não fará'", disse Oyelowo.

No filme, King lidera uma marcha sangrenta, e sempre contestada, de Selma a Montgomery, Alabama, para promover a luta pelo direito dos negros ao voto no Estado e em todo o Sul dos EUA. O elenco inclui Tom Wilkinson, Tim Roth e Oprah Winfrey.

CHAMADO DIVINO

"É o papel mais desafiador que já interpretei", disse Oyelowo sobre Luther King. Ele recordou ter sentido uma conexão visceral com o personagem ao ler o roteiro, em 2007, quando sentiu que Deus queria que interpretasse o papel do líder dos direitos civis, morto em 1968 aos 39 anos.

O desafio era ir além de uma imitação de um homem cujas palavras e rosto eram amplamente conhecidos. Oyelowo teve bastante tempo para se preparar porque o projeto passou por diversos diretores e contratempos.

"Eu não teria levado essa busca adiante da forma que fiz se não sentisse um chamado", disse Oyelowo.

Ele ressalta ainda o momento oportuno para o filme, lançado nos Estados Unidos em meio a revoltas contra um policial branco que matou a tiros um adolescente negro em Ferguson, no Missouri.

Ator teatral formalmente treinado na Academia de Música e Arte Dramática de Londres, Oyelowo ganhou fama no teatro e televisão britânicos, antes de se mudar para Los Angeles com a mulher Jessica e os dois filhos do casal, em 2007.

O ator inglês atuou em longas como "O Último Rei da Escócia" (2006), "Histórias Cruzadas" (2011) e "O Mordomo da Casa Branca" (2013). Mas em Luther King ele conquistou o papel de uma vida.

A diretora Ava DuVernay relata que Oyelowo jamais usou sua voz natural durante os 32 dias de filmagem.

"Ele se entrega completamente à ideia não de interpretar um personagem, mas de ser o personagem", afirmou.

"Selma" provou ser tanto exaustivo quanto empolgante, avalia David Oyelowo.

Certa noite, em casa, o ator diz que se olhou no espelho e quem olhou de volta foi King.

Nos dias anteriores à filmagem do discurso de King em Montgomery –os discursos no filme não são históricos, mas sim textos escritos pela diretora DuVernay– ele começou a sentir um medo irracional de ser assassinado.

"Creio que exista um medo inerente de personagens negros poderosos, condutores de seus destinos. É um medo inconsciente. E por medo quero dizer que o fato de interpretarmos empregados, escravos, pessoas sofridas, subjugadas pode influenciar o que aspiramos ser."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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