Folha de S. Paulo


Conferência discute propostas para conter o roubo de arte da Antiguidade

Elas sempre estiveram entre os espólios da guerra, sedutoras em sua beleza, hipnóticas em seu valor para comerciantes, museus e colecionadores.

E depois de uma década de tumultos e de um período ainda mais longo de destruição deliberada, as antiguidades do planeta estão sob tamanha ameaça que os preservacionistas estão apelando urgentemente por novos controles.

Em uma conferência em Berlim, na semana passada, 250 especialistas internacionais em antiguidades discutiram maneiras de ajudar Síria, Iraque e Egito, bem como o Afeganistão e outras regiões ameaçadas, a proteger propriedades culturais em risco.

Sergey Ponomarev/The New York Times
Soldados sírios no Templo de Baal, que estavam ocupadas pelos rebeldes
Soldados sírios no Templo de Baal, que estavam ocupadas pelos rebeldes

Os combates no Oriente Médio e Afeganistão foram devastadores para o patrimônio histórico e artístico local, mas a deterioração, negligência e fervor religioso também tiveram pesado custo; a destruição é propelida igualmente pela demanda persistente por bens saqueados, dizem especialistas europeus.

Muitos participantes na reunião de Berlim apelaram por leis mais rigorosas que dificultem aos muito ricos a aquisição de porções tangíveis da história do mundo.

Ou, como disse Monika Grütters, comissária da Cultura da Alemanha, ao propor novas e abrangentes restrições ao nebuloso mercado de antiguidades de seu país, "a herança cultural de toda a humanidade" é algo que todos deveriam ajudar a preservar.

A conferência, intitulada "História Cultural em Risco", teve como anfitrião o Ministério do Exterior e outras agências do governo alemão.

Este mês, em outra conferência em Paris, Irina Borkova, a búlgara que comanda a Organização para Educação, Ciência e Cultura das Nações Unidas (UNESCO), propôs novas maneiras de controlar o mercado ilegal de antiguidades, que movimenta bilhões de dólares ao ano.

Ela quer a proibição do comércio de peças da antiguidade do Iraque e Síria, e instou pela criação de zonas de segurança para proteger propriedades culturais na Síria, a começar pela mesquita de Aleppo.

A conferência de Paris contou com a participação de Emily Rafferty, presidente do Museu Metropolitano de Arte de Nova York (Met), e representantes do Louvre, do Museu Pergamon, em Berlim, e do British Museum.

Saquear tesouros de arte sempre foi parte da guerra e uma afirmação de superioridade cultural. A disputa talvez mais conhecida voltou a se aquecer este mês quando o British Museum —que por muito tempo afirmou que o friso do Parthenon que lorde Elgin levou da Grécia para Londres no começo do século 19 não poderia ser devolvido ou dividido— emprestou uma de suas estátuas ao Museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia.

A própria Rússia há muito recusa devolver à Alemanha tesouros artísticos levados pelas tropas soviéticas na Segunda Guerra Mundial.

Já a Alemanha tem uma dolorosa história de confisco de obras de arte pelos nazistas, em sua maioria de proprietários judeus e museus.

Isso e a recente descoberta de um tesouro artístico acumulado por um comerciante de arte da era nazista e mantido em segredo durante décadas por Cornelius Gurlitt, seu filho, que vivia recluso, ajudou a promover uma proposta para leis que especialistas em arte descrevem como as mais abrangentes já apresentadas para a regulamentação do florescente mercado de propriedades culturais.

Entre as propostas alemãs está uma medida que requereria que comerciantes exibam uma licença válida de exportação emitida no lugar de origem da peça, quando esta entrar na Alemanha.

Países como a Suíça e membros da União Europeia como a França, Itália e Reino Unido adotaram regras consideravelmente mais rigorosas nos últimos anos, e agora as estão reexaminando.

Vincent Geerling, presidente da Associação Internacional de Comerciantes de Arte Antiga, sugeriu que os museus e colecionadores podem se policiar sem interferência do Estado. "Não precisamos de leis adicionais na Alemanha", ele declarou.

Neil Brodie, especialista em antiguidades no Centro Escocês de Pesquisa da Lei e do Crime, Universidade de Glasgow, disse que a proposta alemã poderia ser importante. "De certa forma, os Estados Unidos são os mais avançados", com seu acordo quinquenal renovável junto a cerca de uma dúzia de países afetados pelo comércio ilícito de bens culturais.

"Mas os alemães querem ir um passo além", acrescentou. "Não é preciso apenas provar que algo não é ilícito, mas sim demonstrar que é idôneo".

A primeira tentativa mundial de regulamentar o comércio de arte antiga foi a convenção da Unesco de 1970, com 127 signatários. Mas colocar as restrições em prática depende dos governos nacionais, e a data de 1970 alimentou o que o ministro da Cultura do Egito, Mamdouh Mohamed Eldamatty, define como "lavagem de antiguidades".

Como na lavagem de dinheiro, ele diz, comerciantes correm para provar que os objetos deixaram o país dele - ou outras nações - antes de 1970, e portanto podem ser comerciados legalmente agora. No geral, muitos especialistas imputam a culpa pelas transações com propriedades culturais do passado ao desejo das pessoas ricas de terem objetos antigos dos quais se vangloriar.

"Não existe negócio se não existirem compradores", disse France Desmarais na reunião de Berlim. "Não compre esse tipo esse tipo de coisa e pronto", disse Desmarais, especialista do conselho Internacional de Museus, em Paris.

Em palestra, Brodie usou exemplos da Itália nos anos 90; da Índia e Nova York em 2010; e do Camboja em 2009 para ilustrar sua acusação de que 95% das transações internacionais com antiguidades são maculadas por crimes.

Um passo necessário para o controle desse comércio, ele sugeriu, é o foco nos especialistas que, em certos casos involuntariamente, emprestam seu conhecimento ao que ele descreve como crime organizado - na definição das Nações Unidas, uma estrutura de pelo menos três pessoas que se unam para burlar a lei.

"Esses especialistas operam sem nem pensar que podem estar envolvidos em crimes", ele disse. "Acho que esse é um dos gargalos. Creio que seria fácil conter essas pessoas".

Brodie sugeriu que serviços de mídia social ajudaram a Síria a rastrear roubos porque as pessoas postam fotos e notícias sobre objetos saqueados no Facebook ou Twitter praticamente no momento do roubo. Mas outros especialistas sugerem que a presença de estudiosos estrangeiros pode sinalizar aos criminosos culturais a localização de tesouros.

Quando arqueólogos europeus deixam um sítio no Afeganistão, por exemplo, os comerciantes de arte chegam, diz Christian Manhart, que trabalha em preservação cultural na Unesco, tem longa experiência no
Afeganistão e agora está radicado no Nepal, onde tenta conter uma nova onda de roubo de objetos culturais.

Manhart mostrou um slide de afegãos em um sítio remoto de patrimônio cultural, sob uma faixa que dizia, em persa e inglês, que "um país sobrevive quando sua cultura sobrevive".

"Deveríamos meditar sobre isso", ele declarou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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