Folha de S. Paulo


Filha de Antonio Candido supreende ao ganhar prêmio literário aos 70 anos

Ana Luisa Escorel, 70 anos, pegou de surpresa o mundo literário quando venceu, no início de novembro, o Prêmio São Paulo de Literatura com o romance "Anel de Vidro".

A escritora é filha de Antonio Candido, 96, fundador da crítica literária nacional e um dos maiores intelectuais vivos do país, e de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), filósofa, ensaísta e uma das mais importantes professoras de estética da USP.

Prima por parte de mãe do escritor Mário de Andrade (1893-1945), Ana Luisa cresceu numa casa em São Paulo frequentada por intelectuais como o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Ela conta que, no entanto, jamais circulou pelo meio literário, no qual ainda se vê como uma "outsider".

"O trabalho na Ouro sobre Azul me ocupa tanto que eu não tenho muita ideia de como é o mundo aí fora, como são os grupos literários", diz, referindo-se à editora que fundou em 2004 para editar a obra do pai e pela qual publicou seus dois próprios romances.

"Anel de Vidro" é o segundo livro da autora e designer formada pela Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio.

O romance –sobre um caso de adultério, que altera o foco narrativo entre as perspectivas das quatro personagens envolvidas– começou a ser escrito um mês depois da estreia, "O Pai, a Mãe e a Filha" (288 págs., R$ 38,50), de 2012.

Este último –nascido de um jogo literário, via e-mail, entre ela, as irmãs e quatro primos em torno da casa que frequentavam na infância em Poços de Caldas (MG)– romanceia as suas memórias de infância.

Mesmo com a honraria e os dois títulos publicados, Ana Luisa afirma que não se reconhece como "escritora profissional", por não participar de encontros literários ou publicar em jornais. Mais ainda, ela diz que compreende se por acaso alguns colegas ficaram "meio injuriados" pela vitória dela no Prêmio São Paulo.

DE OUTRO MUNDO

Se não injuriado, o meio literário ficou atônito. A escolha de Ana Luisa para o Prêmio SP, o maior em remuneração no país (R$ 200 mil na categoria principal), tomou de assalto críticos e autores ouvidos pela reportagem. Embora a maioria conhecesse a ascendência da premiada, nenhum tinha lido "Anel de Vidro".

Um dos críticos observa que foi um livro pouco comentado. Outro afirmou que, no início, pensava que a escritora fosse filha de um cineasta dos anos 1980, em referência ao sobrenome adotado por Ana Luisa após o casamento em 1968 com o cineasta Eduardo Escorel. Ambos pediram para não ter seus nomes revelados.

Segundo Ivan Marques –um dos quatro integrantes do júri do prêmio, formado também pelo escritor Rubens Figueiredo, o consultor editorial Carlo Carrenho e a editora Maria Rita Sigaud–, Ana Luisa Escorel "parece que veio de outro planeta mesmo, no sentido de alguém que não frequentava o meio".

Marques diz que a escolha de "Anel de Vidro" foi quase unânime. "Ficamos surpresos. É uma narrativa simples e ao mesmo tempo complexa na armação. Convence pela densidade psicológica."

O PAI, A FILHA

"Quando falo que sou tardia é para incentivar quem também seja. De repente surge uma possibilidade com a qual você levou anos sem conviver", conta a autora, que publicou o primeiro livro aos 68. "Não queria entrar por esse veio, mas em termos psicanalíticos é possível entender porque nunca escrevi."

Escrito "O Pai, a Mãe e a Filha", veio a leitura do pai. E, do crivo de Antonio Candido, Ana Luisa afirma que não teve "o menor medo".

"Minha relação com ele é de companheirismo. E nem dou essa bola toda para a opinião dele que todo mundo dá", diz. "O fato de o Antonio Candido ser quem é, isso vale para os outros. Para mim, não."

Ela diz que ignorou algumas observações do pai sobre o premiado "Anel de Vidro". "Olha, você não tem a menor razão", conta ter dito a ele. Em conversa recente com a filha por telefone, Candido teria voltado atrás: "Quem tinha razão era você", disse o crítico, ainda segundo o relato da filha.

A reportagem tentou entrevistar Candido, mas a família afirmou que ele se recuperava de um mal-estar e que preferiu não falar.

Ana Luisa também contrariou o pai quando, em 2004, decidiu reeditar a obra dele, até então dispersa, pela então recém-criada Ouro sobre Azul.

Ela conta que, ao ouvir suas intenções, Candido colocou as mãos na cabeça e disse: "Você não faça isso! Vai falir no primeiro ano, meus livros não vendem".

Dez anos depois, a Ouro sobre Azul continua em pé, tocada pela escritora e por outros três funcionários, e tem no catálogo títulos como o roteiro do filme "O Palhaço", de Selton Mello e Marcelo Vindicatto, de 2012.

A obra de Candido, ainda o núcleo da casa, "não para de sair", diz a filha e editora. Títulos como o clássico "Formação da Literatura Brasileira" (1975) ganham novas fornadas a cada ano e meio, em edições que variam de 1.500 a 3.000 exemplares.

Os R$ 200 mil do prêmio, afirma, serão integralmente investidos na editora: "A vida de uma editora pequena é difícil. O prêmio veio numa hora formidável".


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