Folha de S. Paulo


Mike Leigh fala sobre 'Mr. Turner' no Festival de Cinema de Nova York

A paleta de reflexão e sociologia que interessa ao diretor britânico Mike Leigh se mistura com a usada pelo pintor J. M. W. Turner em sua vida e obra no filme "Mr. Turner", uma das pérolas roubadas do Festival de Cannes e exibido nesta sexta-feira (3) no Festival de Cinema de Nova York.

Longe do cinema biográfico convencional, o diretor de "Segredos e Mentiras" e "Vera Drake" aproxima das classes baixas o discurso artístico e transforma o antecessor do Impressionismo em resumo de seu mundo, carente de todo glamour, onde a beleza emerge do feio.

"Tinha todos os requisitos para ser um personagem do cinema de Mike Leigh. E com isso me refiro ao que é complexo, vulnerável, forte e frágil. Um ser humano como qualquer um de nós", relatou o cineasta no Lincoln Center.

Divulgação
O ator Timothy Spall, que interpreta o pintor Turner, em cena do filme
O ator Timothy Spall, que interpreta o pintor Turner, em cena do filme

Leigh demorou quatro anos para conseguir financiamento e iniciar o ambicioso projeto que deu ao seu protagonista, o ator Timothy Spall, o prêmio de interpretação em Cannes. Mas parece que o resultado, um sutil quadro cinematográfico de duas horas e meia de duração, valeu a pena.

Da mesma forma que o pintor decidiu captar os elementos mais difusos da realidade, como a fumaça de um trem ou o bafo de uma tempestade, Leigh chegou a Nova York disposto a mostrar esse ente intangível, o talento, que se cruza na vida de um homem primitivo, pouco cerebral e que detesta o discurso da elite intelectual.

Um homem parco em palavras, cujos diálogos se reduzem praticamente a grunhidos, chamado a mudar a história da pintura e calar as bocas dos charlatões.

"Ele foi um dos primeiros a perceber que a chegada da fotografia mudaria a pintura para sempre. Mas que não a mataria, a estimularia", explicou o diretor, rodeado de parte do elenco, entre eles Spall e Marion Bailey.

Ele utilizou como metáfora para sua escolha artística o quadro de Turner "Aníbal cruzando os Alpes", no qual o elemento mais reconhecível desta passagem, o elefante, se perde entre a multidão.

"A maioria dos pintores teria enchido a tela de elefantes e ele fez uma declaração de intenções com este quadro. E isso é o mesmo que eu tentei fazer", disse Leigh.

Assim, "Mr. Turner" procura a vida oculta do pintor, que decidiu sair dos círculos que tinha que frequentar socialmente enquanto pintor para estabelecer uma singela e enternecedora história de amor com a gerente de uma pensão.

"Certamente que uma fonte de inspiração para o filme foi a obra de Turner, mas também o momento em que se ambienta, a mudança na Inglaterra do rei George na era vitoriana", disse Leigh, ou, em termos artísticos, o salto do romantismo para o Impressionismo.

E também analisa o tormento que sente um gênio por ser apreciado pelas pessoas que ele mais detesta (os críticos, liderados pelo lendário John Ruskin, e outros pintores como John Constable) e que é alvo de piadas da parte da cidade que respeita, com quem se identifica e para onde quer atrair os museus.

Embora Leigh opte por alguns planos pictóricos, especialmente nas cenas no estúdio do pintor, o filme está longe de ser uma translação literal de sua corrente artística, como fizeram Peter Greenaway com Rembrandt em "Ronda Noturna" ou Julie Taymor com "Frida".

"Mr. Turner"entra na categoria de filmes "roubados" do Festival de Cannes pelo evento nova-iorquino, junto com outros longas como o americano "Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo", de Bennet Miller, "Abundância", do argentino Lisandro Alonso, ou "Pasolini", de Abel Ferrara.


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