Folha de S. Paulo


Crítica: Morrissey oscila em novo álbum

O décimo álbum solo de Morrissey, "World Peace Is None of Your Business", não é um bom disco. Por outro lado, é um disco quase perfeito.

Com suas canções de arte assertivas permeadas de sons elegantes e guitarra novo-flamenca, suas letras toscas e sua condenação de tantos empreendimentos humanos, "World Peace" constitui uma espécie esdrúxula de sucesso pedante. Tanto assim que um disco melhor —como seu último, "Years of Refusal", de 2009, ou seu melhor solo, "Vauxhall and I", de 1994— pode parecer tímido na comparação.

"World Peace" é o primeiro álbum de Morrissey depois de "Autobiography", seu livro de memórias publicado no ano passado e que virou best-seller. O livro narra sua infância e juventude em Manchester, Inglaterra; o período em que foi vocalista dos Smiths e herói de estudantes e desajustados, entre 1982 e 1987, sua carreira solo e seus esforços para persistir como ser humano na tradição romântica em meio a boçais, carnívoros, hippies e monarquistas.

Daniel Sannum Lauten/AFP
O cantor britânico Morrissey se apresenta na Noruega, na entrega do Prêmio Nobel, em dezembro
O cantor britânico Morrissey se apresenta na Noruega, na entrega do Prêmio Nobel, em dezembro

O fato de "Autobiography" ter vendido muito bem não chegou a surpreender: os fãs de Morrissey são vitalícios e intransigentes, pessoas cuja consciência foi transformada pela exposição precoce à dele, da mesma forma que a dele foi transformada pela exposição precoce à de Patti Smith e Oscar Wilde. Também não surpreendeu o fato de o livro conter trechos bem contundentes.

Morrissey, hoje com 55 anos, é alguém que trabalha antes de mais nada com o texto. Sua voz de letrista parece ter gerado quase tudo a seu respeito, desde o primeiro single dos Smiths até agora: sua empatia, seu senso de isolamento e diferença, suas posições de confidente e controlador. (E possivelmente até o tom da voz com que ele canta: seu suspiro letal, seu som sedutor.) Graças a isso, suas letras expressam uma persona que foi conquistada. O sucesso "The More You Ignore Me, the Closer I Get", de "Vauxhall and I", foi um aviso, como de alguém que persegue uma vítima, disfarçado de canto sereno de amor. Ele canta: "Hoje sou uma parte central/ Da paisagem de sua mente, quer você ligue para isso, quer não".

Mas "Autobiography" também continha algumas de suas piores características, que nem sempre estiveram presentes em sua arte: o modo como Morrissey põe a culpa em outros e se retrata como mártir, seu hábito de fazer sermões farisaicos que ultrapassam o ponto em que poderiam ser úteis e instrutivos, e uma tendência a menosprezar as pessoas, observando que são gordas, por exemplo. Tudo isso vendeu, é claro, juntamente com as coisas boas. O próprio artista ficou satisfeito com a performance de "Autobiography". "O livro está fazendo mais sucesso que qualquer disco que já lancei", ele escreveu em janeiro, respondendo à pergunta de um fã no site true-to-you.net e dizendo que agora está escrevendo um romance.

Morrissey muitas vezes parece começar com um título —como "World Peace Is None of Your Business", que é também o primeiro verso de uma balada romântica ao estilo dos anos 50, com o mesmo título, que está no novo álbum—, e depois ele começa a contar a verdade. "Não atrapalhe a organização", ele prossegue, imitando a voz do Estado.

Depois canta: "Cada vez que você vota, você apoia o processo". Ele está reconhecível, mas não provoca mais -está transmitindo uma posição. Não é uma posição que seja própria dele, e talvez não seja própria de você. Ele lhe dá uma razão para parar de escutar.

Ele volta para suas queixas antigas, mas com especificidade maior. "Oboe Concerto", adágio e solene, trata do envelhecimento e da morte, com trechos de estática de sintetizador. O melhor de tudo é que contém o senso de irresolução e uma versão do suspiro.

Muitas das canções não fazem isso. Soam inflexíveis e transmitem o tipo de misantropia pouco pensada que não ilumina o homem tanto quanto lhe garante a última palavra. Talvez elas visem nosso bem. Isso é impressionante e é sinal de princípios, mas faz pensar na voz do castigo, na voz do Estado.

Isso é próprio de Morrissey?


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