Folha de S. Paulo


Crítica: Em 'Candide', Bernstein teletransporta estilos musicais

"Se este aqui é o melhor dos mundos possíveis, o que serão os outros?" Quem pergunta é o personagem título do "Cândido" (1759), de Voltaire (1694-1778), logo após quase ter sido morto pela inquisição ibérica.

A sátira iluminista não poupa ninguém: religiosos, governantes, soldados, comerciantes e intelectuais - como o filósofo Leibniz (1646-1716) - são satirizados sem meias palavras.

Transformado em opereta por Leonard Bernstein (1918-90), "Candide" estreou na Broadway em 1956, e seguiu sendo revisado ao longo das décadas seguintes.

A versão em forma de concerto apresentada pela Osesp na sexta (27), sábado (28) e domingo (29), contou com a direção cênica de Jorge Takla, que utilizou criativamente o espaço em torno da orquestra para construir uma teatralidade enxuta e eficaz.

Comandado pelo barítono brasileiro Paulo Szot (como narrador e Pangloss) - um artista completo, que integra indissoluvelmente locução falada, canto e movimento corporal -, o elenco teve também a bela voz do tenor Keith Jameson (como Candide) e a ágil e divertida soprano Lauren Snouffer (como Cunegonde).

Snouffer desfilou coloraturas e dós agudos na ária "Glitter and be gay" (Brilhe e seja feliz), uma obra prima ao mesmo tempo pós-Mozart (1756-91) e pós-Gershwin (1898-1937), com a qual Bernstein teletransporta o século 18 ao 20.

Ou seria o contrário? De fato, o compositor mira também o falso otimismo que encobre as cicatrizes da civilização pós-Hiroshima, o que contamina o tom da narrativa original.

Descolada do texto, a música - como em Brecht (1898-1956) - torna o ordinário extraordinário: Bernstein brinca com os estilos, vai do coro sacro ao jazz.

Seus quartetos e duetos revelam seres cheios de si, "que são tudo o que precisam" - a ponto de nem perceberem fazer parte dos previsíveis clichês de óperas e musicais.

Na estreia, quase tudo saiu bem. Marin Alsop colocou a orquestra à serviço dos cantores e aproveitou todos os espaços vazios para comentários instrumentais.

A coloquialidade teatral, no entanto, quase rompeu os rigores do tempo musical em passagens da Old Lady (interpretada por Joyce Castle), e um problema com a legenda no "Auto-da-fé" demorou tempo demasiado para ser resolvido.

Que essa música seja programada exatamente no momento em que o Brasil é convocado a pensar sobre o que é e tem sido, é mais um acerto: se "não somos puros, nem sábios, nem bons", podemos ao menos "cuidar do nosso jardim".

AVALIAÇÃO bom


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