Folha de S. Paulo


Autor de 'O Caçador de Pipas' fala sobre relacionamento com o país natal

"O Caçador de Pipas", romance de estreia de Khaled Hosseini, publicado em 2002, foi um best-seller incomum sobre a amizade entre um jovem e um criado durante um período destrutivo da história do Afeganistão.

Ele escreveu o livro trabalhando de manhã bem cedo, antes de iniciar seu expediente como médico. Depois vieram "A Cidade do Sol"(2007) —outro livro comovente sobre amizade, dessa vez entre duas mulheres afegãs— e seu mais recente trabalho, "O Silêncio das Montanhas", no qual um irmão e irmã são separados na infância —seu mais ambicioso e intrincado projeto até o momento. Somados, os três títulos venderam espantosos 42,5 milhões de cópias.

Leia abaixo entrevista com o autor:

Qual é a importância de contar histórias em sua vida?

Khaled Hosseini - Eu costumava contar histórias aos meus filhos. Eles agora têm 13 e 11 anos, mas eu costumava ler para eles antes de dormir e os dois adoravam quando eu inventava histórias folclóricas. Eu criava suspense a cada noite. Era um bom jeito de convencê-los a escovar os dentes e se acomodarem para dormir.

Eu improvisava a cada noite, e adorava. Minha avó e meu pai tinham talento para contar histórias. A fábula com que abro "O Silêncio das Montanhas" —ainda que eu a tenha inventado— é uma homenagem às histórias que eu ouvia quando menino. Talvez seja só um clarão de nostalgia, mas costumava haver, acredito, mais apetite por, e mais atenção a, esse tipo de história, naqueles dias.

Quando sua família deixou o Afeganistão e se transferiu aos Estados Unidos?

Saímos de Cabul em 1976. Meu pai tinha um posto diplomático em Paris. Depois da invasão soviética, pedimos asilo político nos Estados Unidos. Foi em 1980, eu tinha 15 anos. Para meus pais, que sempre foram doadores generosos, era uma afronta viver de benefícios do Estado —de caridade.

Meu pai encontrou trabalho como instrutor de autoescola, minha mãe (que era professora por formação) trabalhou como garçonete e depois em um salão de beleza —ela aprendeu a cortar cabelos e trabalhou por duas décadas como cabeleireira. Meu pai, ironicamente, mais tarde se tornou funcionário do governo, e decidia sobre a concessão de benefícios a imigrantes. Ele era muito bom nessa função, porque era compreensivo e compassivo.

E você se tornou médico? Sente falta da medicina, agora que a abandonou?

Escolhi esse ramo porque me daria segurança, porque eu não ficaria à deriva. É o mais importante dos trabalhos —as pessoas lhe confiam o que elas têm de mais sagrado. Mas nunca foi uma paixão duradoura. Escrever, sim.

Foi estranho para você perceber que "O Caçador de Pipas" estava voando tão alto?

Depois da publicação, por mais de um ano quase nada aconteceu. Eu não tinha muita esperança. Mas então comecei a perceber pessoas lendo o livro —até em aviões, quando eu estava viajando. O livro estava em toda parte, era surreal. Eu fiquei orgulhoso, mas era uma história tão sombria, com um protagonista tão fraco, e passada em um país sobre o qual as pessoas dos Estados Unidos sabiam tão pouco... não achei que isso fosse material de best-seller.

Você empinava muitas pipas em Cabul?

Todos nós empinávamos. Era uma diversão, um passatempo de inverno. A escola fechava e as férias duravam três meses. Não havia televisão —eles mostravam o mesmo filme por meses a fio. [risos] Empinar pipas foi sempre a imagem central de minha infância.

Quais eram as vantagens/desvantagens de escrever sobre o Afeganistão na Califórnia?

Eu saí do Afeganistão na metade dos anos 1970, de modo que tenho uma perspectiva distorcida. É um salto de imaginação escrever sobre as pessoas que tiveram de viver tempos tão difíceis.

Percebo que você toma cuidado para não se posicionar como porta-voz do Afeganistão.

Ninguém deve acreditar no que os profissionais de relações públicas dizem sobre a pessoa. Seria grotesco. Mas ainda assim passei meus anos de formação lá. Importa-me o que acontece lá. Por anos, a medicina dominou minha vida. Era um trabalho fisicamente cansativo, emocionalmente desafiador. O Afeganistão perdeu espaço. Desde que comecei a escrever livros, o Afeganistão voltou a ser uma parte grande de minha vida. Reconectei-me ao país de modo muito íntimo.

Divulgação
Cena do filme 'O Caçador de Pipas', baseado no livro de Khaled Hosseini
Cena do filme 'O Caçador de Pipas', baseado no livro de Khaled Hosseini

Fale-me sobre a Fundação Khaled Hosseini.

É uma organização de assistência às mulheres, crianças e idosos —grupos marginalizados no Afeganistão. Fazemos muitas coisas diferentes, entre as quais tentar arranjar empregos para mulheres, construir abrigos para refugiados que voltaram ao país depois da queda do Taleban, e temos programas que ajudam na educação das crianças e ajudam mulheres a estudar medicina.

É possível prever o que acontecerá no Afeganistão?

Encaro as previsões com suspeita. Os próximos anos serão um período de ansiedade e incerteza, com a retirada da Otan (Organização para o Tratado do Atlântico Norte) e dos Estados Unidos. Há quem acredite que uma guerra civil será inevitável. Espero —talvez ingenuamente— que a sensatez prevaleça e que tenhamos aprendido a lição dos conflitos dos anos 1990. O resultado das eleições me animou. As pessoas desafiaram as ideias estereotipadas sobre o Afeganistão e se declararam interessadas na democracia.

Você tem um senso comovente sobre a interconexão das vidas humanas. De onde isso vem?

Interessa-me muito a maneira pela qual as famílias e pessoas operam dentro desse complicado, poderoso e confuso mecanismo. Elas ferem umas às outras mas executam atos de altruísmo e sacrifício, e se sentem unidas. Cresci com a ideia da família como unidade essencial. No Afeganistão, você não vive como pessoa isolada. É o filho, neto e irmão de alguém.

No entanto, seu mais recente romance é sobre irmãos separados, um irmão cuja irmã é vendida em Cabul. Você diz que a trama foi inspirada por uma reportagem sobre a venda de filhas por famílias pobres. Não é algo comum, certamente?

Quando li a respeito, achei absurdo, em 2008. Mas o Afeganistão é o país mais pobre do planeta. Meu pai me disse que esse tipo de coisa acontecia o tempo na infância dele, nos anos 1950.

Sua mulher é norte-americana?

Não, é afegã, ainda que tenha sido criada nos Estados Unidos. Os pais dela se mudaram para cá nos anos 1960.

Seus livros têm tramas redondas, a estrutura surge com facilidade?

A estrutura é a decisão mais difícil, um fator decisivo. Meus livros jamais vão para onde eu achava que iriam. Esse é como um carvalho: um grande tronco do qual histórias se estendem como galhos. Quanto mais fácil uma coisa parece de ler, mais difícil é de escrever.

Um de seus personagens diz que nunca temos tanto tempo quanto imaginamos. Qual é sua relação com o tempo?

Na casa dos 20 anos, parecia infinito. Aos 49, tive a chance de ver como a vida pode ser escura, e estou mais consciente das limitações de tempo do que quando escrevi "O Caçador de Pipas". Estou ciente de que o número de coisas que ainda posso fazer é limitado.

E o que você está fazendo? Desfrutando de um merecido repouso?

Odeio repouso. Isso me deixa inquieto. Prefiro trabalhar. Não quero provocar, e por isso não me estenderei a respeito. Para mim demora decidir se um livro irá adiante ou se devo abandoná-lo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: