Folha de S. Paulo


Opinião: No Oscar, nem realismo nem fantasia dão conta dos vencidos

Este foi um Oscar que tematizou as relações entre cinema e política. "Lincoln", "Argo" e "A Hora Mais Escura" reconstroem, respectivamente, a aprovação da emenda que aboliu a escravidão, o resgate de reféns americanos no Irã e a captura de Bin Laden, enquanto "Django Livre" imagina uma fantasia a partir da escravidão nos EUA.

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Não se trata de discutir fidelidade a fatos nem de reiterar o direito do cinema à ficção, mas de observar a política que subjaz às escolhas estéticas feitas pelas obras.

Debater se "A Hora Mais Escura" denuncia ou sanciona a tortura já implica ignorar uma operação prévia: não é fatalidade, mas escolha política que o filme acople a captura de Bin Laden à prática da tortura pela CIA.

Ao narrar duas histórias como se fossem uma, ele torna a tortura palatável ao público dos EUA, independente do juízo que o espectador faça sobre ela. A ideologia do filme já está na montagem.

Em "Lincoln", um retrato hagiográfico mas humanizado do personagem, o efeito político depende da renúncia do abolicionista Thaddeus Stevens ao princípio da igualdade das raças, substituída pela igualdade ante a lei.

Apresenta-se esse recuo como garantia da vitória da emenda, distorção que fundamenta o elogio do filme à moderação e envia um recado político apaziguador ao presente.

O vencedor, "Argo", transforma um fracasso dos EUA em sucesso às custas de uma história canadense. O anúncio do prêmio, feito pela primeira-dama na Casa Branca, acrescenta um toque de ironia. O filme, afinal, apresenta a colaboração de Hollywood com a CIA de forma natural, imune a questionamento.

Em "A Hora Mais Escura", "Lincoln" e "Argo", o outro, iraniano, escravo ou islamista, não possui complexidade. O ponto de vista dos derrotados só aparece em "Django Livre". Mesmo em Tarantino, cuja referência é sempre o cinema e não a História, a revanche só acontece graças à tradicional fantasia do branco que resgata o negro.

Nem o realismo nem a fantasia hollywoodiana parecem dar conta dos vencidos.

IDELBER AVELAR é professor de literatura na Universidade Tulane (EUA) e autor de "Alegorias da Derrota" (Editora UFMG).


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