Folha de S. Paulo


Artista expõe ascensão de mercado de arte com objetos transformados

O que faz com que duas câmeras fotográficas compradas por R$ 85, em um mercado de pulgas na cidade do México, cheguem a ser vendidas por R$ 52 mil, num leilão realizado na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010?

Essa é a questão essencial do projeto "Menos-Valia [Leilão]", da artista mineira Rosângela Rennó, que chega, hoje, ao seu último estágio, com o lançamento do livro homônimo (publicado pela editora Cosac Naify, R$ 75, 336 págs.), das 11h às 17h, na Galeria Vermelho.

A publicação documenta todo o processo da artista em torno dessa questão.

Edouard Fraipont/Divulgação
"Lote 28 Caixa BrownieTwin 'lutchadores'", de Rosângela Rennó

Na 29ª Bienal, Rennó apresentou um conjunto de 74 lotes, como são chamadas obras à venda em leilão (15 deles estão expostos na Galeria Vermelho). Eles eram compostos por objetos, em geral relacionados a instrumentos fotográficos, que Rennó garimpou em feiras populares e os transformou.

Dentro da própria Bienal, nos últimos dias do evento, o leiloeiro Aloisio Cravo conduziu o leilão, que no conjunto alcançou nada menos do que R$ 666 mil.

Obviamente, um dos resultados do projeto foi enfocar o ascendente mercado de arte no país e o que o curador mexicano Cuauhtémoc Medina aponta como "a conversão do lixo em ouro no circuito comercial da arte", em seu texto no livro.

Medina, Rennó e Moacir dos Anjos, um dos curadores da 29ª Bienal, falam sobre o projeto, hoje, 15h, na galeria Vermelho. Poucos trabalhos de arte abordaram o mercado de forma tão ousada e irônica.

Leia a seguir entrevista com a artista sobre o projeto.

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Folha - "Menos Valia [Leilão]" lida com temáticas comuns em sua carreira, como memória, imagem e fotografia, mas o projeto parece apontar o mercado como questão central. Por que falar de mercado agora?

Rosângela Rennó - É o que mais chama a atenção e talvez seja tomado como a questão final, mas não é a questão central. É a cereja no topo do bolo. Da apropriação do ready-made (que já é considerado um 'clássico') até a própria estratégia do leilão, tudo tem sido legitimado como arte sob a expressão "práticas contemporâneas de produção artística" e aí está minha questão central. Até que ponto?

Quais práticas são mais artísticas ou mais legítimas? Eu pretendia fazer um exercício de avaliação de todo o processo: da criação do objeto até a especulação em torno de sua venda, uma longa ação ao mesmo tempo estética e política.

O livro existe para ancorar tudo isso. Nele, a parte dedicada à descrição de cada objeto, os ensaios e as citações que escolhi apontam para as outras questões que não eram rapidamente detectáveis dentro da 29ª Bienal.

Realizar um leilão dentro da Bienal de SP foi uma maneira de deixar claro como o comércio está presente mesmo em mostras que não possuem fins comerciais?

Se você e a metade da torcida do Corinthians me perguntam isso é porque há algo no ar As galerias estão atentas a tudo que acontece: conhecem as necessidades dos artistas, as obsessões e desejos dos amantes da arte e a precariedade das instituições.

Aí, para a galeria, basta mover-se um pouquinho mais rápido do que as instituições, que são letárgicas e burocráticas, preenchendo uma larga lacuna, entrando em contato direto com as fontes de investimento.

Outro aspecto dessa obra é o que Cuauhtemoc Medina aponta em seu texto no livro como "a conversão do lixo em ouro no circuito comercial da arte". Contudo, desde Duchamp e passando por todos os conceituais dos anos 1960 e 1970, a arte não se tornou o espaço da apropriação e da ressignificação simbólica?

Acho que, no caso, o Cuauhtemoc está se referindo às obras de arte que são tratadas, num determinado circuito/mercado de arte, como "bens de luxo", exatamente como o são, os jatinhos, relógios caros, vinhos raros, iates etc.

Sabe-se que hoje há uma concentração de riqueza como nunca houve antes e há, também, uma estrutura preparada pra gerar objetos de consumo para esses "hiper-ricos". As "hipermercadorias" comercializadas por algumas galerias, por milhões de dólares, não têm mais nada a ver com o que Duchamp, Kosuth, Arman, Piero Manzoni, eu, você, os curadores da Bienal de São Paulo, da Manifesta e da Documenta (e mais milhares de artistas, curadores e críticos) pensamos que é ou denominamos "arte".

Mesmo com a publicação, há dois valores: R$ 75 para o livro e R$ 2.000 quando há o livro, o disco de vinil com a gravação do leilão (que não vale mais que R$ 25) e sua assinatura. Sua assinatura vale então R$ 1.900?

Será? Só saberei se houver compradores de livros dispostos a pagar esse preço pela edição especial. Vou ficar aguardando o resultado, da mesma maneira que aguardei pelo final do leilão.

Você tem defendido "Menos Valia [Leilão]" como "recuperacionismo ativo de transformação". O que significa essa estratégia?

Uma tendência observada em países cuja adaptação e flexibilidade são regras fundamentais de sobrevivência como Cuba, Brasil, Índia, México, países africanos e outros igualmente antenados. Países recentemente empobrecidos têm se mostrado interessados nela, embora não possam admitir nem demonstrar publicamente que não só admiram como também querem aprender e se alinhar. Ainda vamos ganhar muito dinheiro, vendendo esse know-how.

MENOS-VALIA LEILÃO
ONDE Galeria Vermelho (r. Minas Gerais, 350, tel. 0/xx/11/3138-1520)
QUANDO de ter. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 11h às 17h; até 16/2
QUANTO grátis


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