Folha de S. Paulo


Alejandro López Castillo

TENDÊNCIAS/DEBATES

O deserto volta ao Sudeste

O Sudeste já pertenceu a um dos maiores desertos da Terra há mais de 130 milhões de anos. Pode voltar a fazer parte de um se nada for feito

O verão de 2014 nas regiões Sudeste e Sul do Brasil entrará para a história como um dos mais quentes e secos dos últimos tempos. Por um período, com baixa umidade e temperaturas altas, experimentou-se no início deste ano o que poderia ser um deserto. O interessante é que essas duas regiões já pertenceram a um deserto no passado.

Essas duas regiões estão na maior área não desértica de uma faixa tanto ao sul quanto ao norte da Terra onde se concentram os principais desertos. Essa excepcional umidade deve-se a três motivos: ao rio Amazonas, à floresta amazônica e à cordilheira dos Andes.

A cordilheira serve como barragem de umidade e ajuda a formar o rio Amazonas e também é responsável por represar os "rios voadores" (correntes de umidade) e fazer chover em diversas regiões do Brasil. O rio Amazonas contém um volume imenso de água que se evapora constantemente e a floresta amazônica mantém em circulação a umidade local que é transportada para regiões distantes.

Será que somente um rio e uma floresta dessas proporções evitariam que as regiões Sul e Sudeste se tornassem outra vez um deserto? Pelo ritmo de nosso desenvolvimento, talvez não demore muito para sanarmos essa dúvida. A esperança é que talvez essa pergunta possa ser respondida antes pela inteligência humana, com recursos tecnológicos e conhecimento científico, e não pela mãe natureza.

Essa coincidência geográfica já deveria ser motivo suficiente de preocupação. A história geológica, entretanto, pode ser ainda mais inquietante. As regiões Sul e Sudeste já pertenceram a um dos maiores desertos em extensão da Terra, isso há mais de 130 milhões de anos.

Por essa época, a América do Sul ainda estava unida à África, formando o supercontinente Gondwana. O Amazonas nascia ao norte da África e desembocava no oceano Pacífico. Com a ruptura do Gondwana, houve a elevação das cordilheiras dos Andes, o que provocou a alteração do curso do rio Amazonas. Essa ruptura também deu origem ao oceano Atlântico e ao maior fluxo de lava da história da Terra, que sepultou as areias do antigo deserto.

O clima desértico abrandou até desaparecer e um novo regime de chuva começou a dominar, dando origem ao aquífero Guarani. A umidade incipiente desse ambiente já seria um prenúncio do clima que prevalece atualmente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.

O antigo deserto foi revisitado em 2014. As cheias no rio Madeira e o baixo nível do sistema Cantareira podem estar conectados, como afirmou o cientista Philip Fearnside, na edição de março da revista "Serafina".

Com o desmatamento em grande escala da floresta amazônica, menos água é transportada pelos ventos para o Sudeste e o Sul na temporada de chuvas de verão, diminuindo a água armazenada nos reservatórios de São Paulo.

Esses reservatórios atingiram os níveis mais baixos da história em 2014. Outros fenômenos podem estar contribuindo para a falta de chuva, como o ciclo natural de resfriamento do oceano Pacífico, El Niño e La Niña. No entanto, são mais de 130 milhões de anos de história geológica e climática que nos ensinam a importância de conservarmos a floresta amazônica.

Por outro lado, também não seria justo deixarmos de comentar que poderia ser instrutivo aprendermos com a história humana. Civilizações sucumbiram por não reconhecer a tempo problemas de escassez hídrica ou de outros recursos naturais, como fizeram supostamente os habitantes da ilha de Páscoa, famosos por seus moais monumentais, estátuas gigantescas feitas de pedra.

A questão da seca na região mais rica e populosa do Brasil é preocupante: há falta de água. Essa grave escassez só seria interrompida por ciclos de chuvas cada vez maiores, o que não se tem observado. Cabe saber se ficaremos construindo moais ou se enfrentaremos esse problema antes que seja tarde.


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