Folha de S. Paulo


Clarice Reichstul: Leia a história 'Aranhas de Marte' completa

A colunista da "Folhinha" Clarice Reichstul publicou neste sábado a última parte de sua história sobre as aranhas marcianas.

Leia história completa abaixo.

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ARANHAS DE MARTE

Como vivem na escuridão, são albinas, brancas como a neve. Até seus pelos são transparentes, mais parecem uma penugem.

Apesar do escuro, elas enxergam direitinho. São muito organizadas e limpinhas, não deixam a poeira marciana entrar em seus ninhos nas profundezas cavernais.
Embora tenham aparência estranha e não muito amigável, as Aranhas de Marte são, no fundo das profundezas de seus corações cavernosos, senhorinhas simpáticas e falastronas, bem parecidas com a sua avó.

Vivem a tricotar e a tecer casaquinhos para as aranhas bebês e competem entre si para decidir quem tem o ponto mais bonito ou eficiente.

A cada tarde, encontram-se em uma caverna diferente, onde organizam chás com muitos petiscos deliciosos que cada uma traz de sua teia: formigas lunares assadas, pastel de lagartas de Vênus, bolinhos de moscas roxas e, em dias de grandes comemorações, preparam o favorito de todas elas: torta de meninos terrestres.

Sério, não estou brincando. É o petisco de que elas mais gostam. Mas é raro encontrar meninos terrestres. Então, quando conseguem por as patas em cima de um, as aranhas comemoram durante dias. E as Aranhas de Marte são comedidas, sabem comer de pouquinho em pouquinho para durar

PARTE 2

No céu azul da manhã, brilhou um fio. Um fio transparente, quase invisível. Só dava para ver quando batia o sol e, mesmo assim, de um ângulo específico, meio de baixo para cima.

Bernardo estava indo a pé para a escola quando viu aquele brilho engraçado. Ficou curioso, afinal, não é todo dia que a gente vê um fio pendurado no céu, quero dizer, pendurado em alguma coisa ou em algum lugar acima do céu, porque não dava para ver a ponta de cima dele.

Olhou admirado para o tal do fio, tão fino, tão incolor. De onde será que ele vem? Não resistiu e encostou nele. Não é que o fio grudou em seu dedo e não queria soltar de jeito nenhum? Tentou uma, duas, três vezes se desgrudar do tal do fio, mas nada.

Como estava ficando atrasado para a escola, resolveu não dar bola para o dito cujo e seguiu seu caminho. Atravessou a rua na faixa, passou em frente à padaria, à banca de jornais e ao ponto de táxi com o fio grudado em seu dedo, e ninguém percebeu.

Passou pelo portão bem na hora do sinal, foi correndo para a classe e entrou segundos antes de o professor chegar. A manhã transcorreu normalmente: aula chata, aula legal, futebol no intervalo, aula de educação física, cochicho com as meninas no corredor, enfim, tudo igual. Quero dizer, igual, igualzinho, não. Afinal, tinha aquele maldito fio grudado no dedo, o que ninguém achava estranho ou anormal.

De onde será que ele vinha?

PARTE 3

Lá no fundo da caverna escura, nas profundezas profundas do planeta Marte, uma sineta toca. Logo, outra começa a tocar também. E mais uma aqui, outra ali; agora bimbalham freneticamente centenas de sinetas de sons claros e luminosos.

As aranhas de Marte, tricotando em suas teias, pulam de susto com a barulheira e já começam a esfregar as patas. O tocar dos sinos significa que as presas morderam as iscas! Três dúzias de meninos terrestres engancharam-se na linha de pesca intergaláctica e estão prontos para serem abduzidos para virarem empadinhas marcianas. A lista de ingredientes dessa delícia da cozinha espacial é extensa --além dos 36 garotos, vai uma porção de outras coisas que as aranhas demoram um bocado de tempo para reunir.

Mas, como elas são gulosas e pacientes, vão juntando os ingredientes com afinco e método. Só faltava mesmo as tais das três dúzias de meninos terrestres. Elas não tinham preconceito quanto à cor, sexo ou religião. Mesmo as crianças mais magrinhas rendiam um caldo delicioso, essencial para o sucesso da receita.

Na Terra, Bernardo já tinha se acostumado com o tal do fio transparente grudado em sua mão e guardava suas coisas na mochila para voltar para casa. Sentiu o fio puxar de levinho e não deu atenção.

E, num estante, zupt! Bernardo desapareceu da sala de aula, deixando os colegas em volta abestalhados.

PARTE 4

Bernardo, que tinha mordido a isca das aranhas de Marte, foi içado com rapidez para o alto e desapareceu de sua classe num espirro, deixando apenas uma mochila vermelha no chão. Enquanto isso, outras 35 crianças terrestres passavam pela mesma coisa: todas caíram no velho golpe do fio brilhante das aranhas de Marte e foram içadas com rapidez ao distante planeta.

A princípio, Bernardo sentiu frio ao ultrapassar a estratosfera, mas era tudo tão impressionante, que ele logo se esqueceu do desconforto. As estrelas, galáxias e buracos negros passavam por sua cabeça como num filme; tinha certeza de que, se esticasse a mão, tocaria nos cometas e asteroides que cruzavam seu caminho.

O espaço sideral era transparente e absoluto, infinito para onde quer que olhasse. Passou por nebulosas e constelações, deu uma volta por Saturno, quase conseguiu patinar em um dos anéis brilhantes. Foi a Plutão, o frio aumentou. Quando não dava para aguentar mais, começou a voltar em direção ao Sol.

Você pode achar esse caminho esquisito, afinal, pra que tanta volta se Marte é logo ali depois da Terra na ordem dos planetas? É que parte da estratégia das aranhas era dar uma maravilhada nas crianças -assim, todas chegavam abestadas, como se ser capturado por um fio que leva até outro planeta já não fosse maluco o suficiente.

PARTE 5

As estrelas brilhavam com força no fundo dos olhos de Bernardo. A velocidade com que ia sendo puxado aumentava cada vez mais. Até que o menino sentiu o corpo ir de encontro a uma teia, algo como uma cama elástica. Foi quicando na rede até parar. Olhou ao seu redor: Que lugar estranho! Estava numa cratera escura, onde a única luz visível era a do céu sobre sua cabeça.

Ele percebeu que, quanto mais se mexia, mais preso ficava na teia. Apesar de estar escuro, grudado no que parecia ser uma teia gigante, Bernardo se sentia confortável e acolhido. Perdido em seus pensamentos, não percebeu um leve barulho crescente. Quase imperceptivelmente a teia voltou a vibrar.

As Aranhas de Marte se aproximavam de sua presa, e Bernardo nem percebia. Quando sentiu o bafo quente do bichoco marciano em seu cangote, o menino começou a berrar: "Não! Não me comam! Eu sou magrinho! Não tenho carne! Não! Não! Nããão..."

Marcelinha, colega de classe de Bernardo, sacudiu-o com força. "Bernardo, ô Bernardo! Acorda! A aula já acabou, está na hora de voltar pra casa!" O menino olhou para a cara da amiga sem entender muita coisa. Cadê a teia gigante? E as aranhas peludas? E a viagem espacial? Aturdido, foi saindo da sala sem perceber o fino e transparente fio grudado em seu mindinho, que ia para o infinito do céu.


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