Folha de S. Paulo


Opinião

Quantos portugueses sofreram infarto durante a Eurocopa?

O meu país enlouqueceu com a vitória da seleção nacional. Mas, no meio dos risos, das lágrimas, dos eventuais desmaios, ainda ninguém respondeu à questão fundamental: quantos portugueses sofreram infarto durante a Eurocopa? Aguardamos informações. Uma coisa é certa: quem sobreviveu às sete batalhas épicas na França irá viver até os cem anos.

Usei a palavra "batalha" e não foi por acaso. Portugal começou mal, muito mal, e esteve a um passo de regressar para casa ainda na fase de grupos. Empatou com a Islândia (uma equipa amadora, mas esforçada). Empatou com a Áustria. E, com a Hungria, esteve a perder –por três vezes. Essa derrota significava eliminação pura e simples. Não aconteceu. Por três vezes, conseguiu empatar. Desconfio que nesse jogo começaram a chegar os primeiros feridos aos serviços de cardiologia.

O povo desesperava. Onde estava o futebol latino, esteticamente deslumbrante, que no passado enchia os patrícios de orgulho? Facto: Portugal não vencia Copas, mas existia uma figura tradicional do nosso futebol –"a vitória moral"– que sempre consolava a alma dos estetas.

Na França, não havia beleza. E, para piorar as coisas, o técnico Fernando Santos repetia que estava ali para ser campeão. "Só regresso para Portugal dia 11 de julho", dizia ele, desafiando os deuses– e a lógica.

O país estava em pânico. E se o técnico pirara? Os comentaristas, 24 horas por dia, usavam o chicote na TV. Todos conhecemos o pessimismo nacional. Um povo de suicidas, como dizia Miguel de Unamuno. Mas os comentários não eram pessimistas. Eram fúnebres. Só faltava alguém dizer que o melhor era desistir a tempo para não envergonhar o nome da pátria.

Ninguém desistiu. Vieram as oitavas. Contra a Croácia, que venceu o seu grupo (a Espanha ficou em segundo lugar). Resultado? Adivinhem. Empate. Assisti ao jogo num restaurante luso e, pela primeira vez na vida, empregados e clientes estavam petrificados. Ninguém servia jantares. Ninguém jantava. Eu ainda tentei pedir um bacalhau à Brás, mas ninguém me ouviu.

E quando, no extra time (como se chama aqui a prorrogação), Portugal marcou um gol, ninguém festejou. Os meus compatriotas eram como as vítimas de tortura psicológica, incapazes de reagir aos mais básicos estímulos. Eu continuava com fome, mas respeitei o momento.

Portugal estava nas quartas. O entusiasmo começou a aparecer, como as flores envergonhadas que conseguem rasgar o asfalto. Polônia, eis o nome. E, nos 90 minutos, empate. E, no extra time, empate. Pênaltis?

"Não nos façam isto!", gritava-se de Vila Real (de Trás-os-Montes) a Vila Real (de Santo António). No estádio também se gritava. Cristiano Ronaldo, capitão, ordenava aos colegas para que não fugissem do campo. "Agora está tudo nas mãos de Deus!", bradava ele –e os microfones a transmitir ao vivo. "Se perdermos, que se foda!", acrescentou ainda uma bela prece que ficará para a história.

Portugal não falhou nenhum dos primeiros cinco pênaltis. A Polônia falhou um na nova rodada. Nos pés de Quaresma, estavam as semifinais. Quaresma caminhou para a área, colocou a bola, rematou, marcou. E quando vemos a reação do jogador, existe um segundo, talvez dois, em que ele não festeja. No rosto, incredulidade e pavor. "Que merda eu fiz?", parece perguntar o atacante.

A equipa respondeu, atropelando o pobre rapaz. Se Quaresma não morria esmagado com 22 jogadores a saltar em cima dele, Portugal era indestrutível.

A imprensa internacional começava a rosnar. Queria as "vitórias morais" do passado, quando havia muita beleza - e, no fim, a Alemanha levava a Copa. Ou a França.

Por falar na França, os jornais gauleses já insultavam. Futebol "nojento", lia-se. Portugal, ironicamente, concordava. "Não me importo de ser campeão só com empates", dizia o técnico. O país ria. Toda a gente estava tão doida quanto ele.

E, nas semifinais, Portugal estragou o sonho do técnico. Não havia empate. Havia vitória (2 a 0) contra o País de Gales. Era impossível não sentir um certo desânimo na torcida. "Onde está a minha adrenalina?", perguntavam os "junkies", com evidentes sinais de privação.

Na final, veio a overdose. A equipa adversária era a França, um velho carrasco que eliminara Portugal em 1984 (nas semifinais da Eurocopa), em 2000 (idem) e em 2006 (semifinais da Copa do Mundo).

E o sofrimento começou logo de início: Cristiano Ronaldo abandonava o Stade de França, lesionado e em lágrimas. "Acabou", suspirava um familiar, conhecido pelo seu optimismo. O técnico português, mais tarde, fazia entrar o atacante Éder na partida - e ele repetia o bom humor: "Massacrados, vamos ser massacrados."

Não fomos. Os 90 minutos terminavam. Empate. O país, esse, já esgotara nas farmácias todas as caixas de Xanax. E quando, no minuto 109 do extra time, o desprezado Éder rematava de fora da área para o primeiro e único e vitorioso golo de Portugal, o meu familiar retirou-se da sala. "Preciso ir no banheiro", disse ele. Nós respeitamos. Uma hora depois, ele ainda lá estava.

*

Amanheceu. País em ressaca depois de uma noite febril e insone. Na TV, os portugueses que vivem na França - uma vasta comunidade de 1 milhão de pessoas –declaravam que o 10 de julho era o dia mais feliz da vida deles. Vencer a Eurocopa era uma coisa. Vencê-la em Paris era uma prova de vida: para que os franceses percebessem que eles não eram "trabalhadores invisíveis". No rosto, as marcas inconfundíveis de quem passara horas a festejar– e a chorar.

Saio de casa, caminho até ao restaurante e peço um bacalhau à Brás para festejar. Sou servido olimpicamente. Depois, em conversa com o dono, provoco: "Agora vamos ganhar a Copa do Mundo, sr. Almeida".

Ele sorri com um esgar de piedade e responde: "Massacrados, vamos ser massacrados."

É um bom sinal.


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