Folha de S. Paulo


Blatter conquistou corações e mentes na África para manter-se na Fifa

Desfiadas nas bordas, as bandeiras da Fifa flutuam ao vento diante da Football House em Lusaka, capital da Zâmbia, com a bandeira do país entre elas. Uma inscrição próxima, muito desbotada pelo sol, diz "Football Association of Zambia, Football House, construída como parte do Programa Gol de Desenvolvimento da Fifa, inaugurada em Lusaka em 6 de abril de 2002 por Joseph S Blatter, presidente da Fifa".

Presentear o futebol de Zâmbia com sua primeira casa é só um exemplo de como Blatter conquistou os corações e mentes da elite do futebol africana. A lealdade dela permitiu que Blatter sobrevivesse a todas as tempestades e é mais crucial que nunca em sua busca pela reeleição em uma organização envolvida no maior escândalo de sua história.

Na quarta-feira (27), as autoridades suíças detiveram sete dirigentes de primeiro escalão da Fifa –incluindo o ex-presidente da CBF José Maria Marin– em uma operação ao raiar do dia montada a pedido dos Estados Unidos e abriram processos criminais relacionados à seleção dos países sede das copas do mundo de 2018 e 2022.

Loretta Lynch, secretária da Justiça dos Estados Unidos, disse que os dirigentes cuja extradição está pedindo supostamente embolsaram US$ 150 milhões, naquilo que Richard Weber, investigador chefe na divisão de investigação criminal do Serviço de Receita Federal norte-americano, definiu como "Copa do Mundo da fraude".

A crise colocou Blatter sob intenso escrutínio no momento em que disputa seu quinto mandato como presidente da organização que comanda o futebol mundial.

O mais provável é que Blatter, 79, continue à frente da Fifa. Ele garantiu que a entidade ofereça dinheiro e encorajamento suficiente para garantir a lealdade de diversas confederações que votam para selecionar o novo presidente a cada quatro anos. A Confederação de Futebol Africana de Futebol (CAF), por exemplo, tradicionalmente vota em favor do suíço por acreditar que só ele se importa com o continente.

DÍVIDA

A Fifa afirma que o Programa Gol de Desenvolvimento construiu mais de 700 edificações para as associações que a integram em todo o mundo –em geral sedes– desde que o programa foi lançado em 1998, ano em que Blatter assumiu o poder. O programa forneceu verbas para "projetos essenciais de futebol", como campos, centros de treinamento, academias juvenis e tecnologia.

Oficialmente, o apoio é incondicional, mas muita gente sente ter uma dívida a pagar mesmo que isso signifique votar em Blatter pelo resto da vida.

"Uma boa ideia está sendo usada contra os princípios da democracia", disse Simataa Simataa, antigo presidente da federação zambiana de futebol. "As pessoas tendem a favorecer qualquer sujeito que esteja fazendo algo de bom; elas aceitam casas dadas por Pablo Escobar e pagas com o dinheiro das drogas. Infelizmente é isso que o Programa Gol vem sendo."

"Eu gostaria que ele fosse um projeto institucional, mas é visto como favorecendo certas pessoas, a saber, Sepp Blatter. Dá vantagem a ele e desvantagem a outros, mesmo que eles tenham melhores ideias. Nesse sentido, ele conta com voto fixo: todo mundo acredita que o próximo cara que aparecer não terá um Projeto Gol", disse Simataa.

A página do Projeto Gol em Zâmbia no site da Fifa inclui uma foto de Blatter, sorridente, ao lado de um zambiano que segura um cartaz com os dizeres "Sepp Blatter. O único homem atento aos problemas da África".

O país empobrecido jamais se qualificou para a Copa do Mundo e conquistou manchetes pelo pior motivo possível em 1993, quando a maior parte de sua seleção nacional foi morta em um acidente aéreo. E então surgiu a Fifa, para construir a Football House em um terreno inaproveitado, por menos de meio milhão de dólares, segundo o site.

A sede, enfeitada por palmeiras, colunas e janelas de dois pavimentos de altura, abriga 30 funcionários em tempo permanente, uma coleção de troféus e, na recepção, fotos gigantes da seleção zambiana conquistando a Copa das Nações Africanas, em 2012, em partida assistida por Blatter.

Reprodução/Fifa.com
Página do Projeto Gol em Zâmbia no site da Fifa; cartaz diz que Blatter olha para problemas da África
Página do Projeto Gol em Zâmbia no site da Fifa; cartaz diz que Blatter olha para problemas da África

ADULTOS NÃO

A Fifa também aprovou um centro técnico nacional ao custo de quase US$ 400 mil, com uma segunda fase aprovada automaticamente três anos mais tarde a custo semelhante. O objetivo declarado era "fornecer um centro de preparação com acomodações confortáveis para as seleções nacionais, e salas de aula e reunião".

De acordo com jornalistas locais, o centro também deveria incluir um campo de futebol e uma piscina.

Mas quando o "Guardian" visitou o local no começo da semana, encontrou quatro edifícios residenciais contendo 24 quartos rudimentares, alguns com as fechaduras quebradas, e uma quinta edificação com um refeitório e cozinha.

Dois faxineiros estavam sentados no gramado, por trás de varais de roupa, tudo isso à vista do novo estádio nacional da Zâmbia, construído pelos chineses. As condições do local eram tão austeras que ele foi considerado inapropriado para seleção adulta, que prefere hotéis. O centro é usado pelas seleções sub-23, sub-20 e sub-17, pelas equipes de seniores e por times femininos, bem como por times que visitam a capital.

Simataa, 54, hoje executivo financeiro, comentou que não se trata de um centro técnico de verdade, e que não está sendo usado para esse propósito. "É um ativo desperdiçado. Isso é um problema local, da atual administração. A Fifa fez sua parte. Jamais recebemos um relatório completo sobre o projeto. É um dos nossos lados sombrios: nos falta transparência."

O "centro" dificilmente parece digno de uma verba total de US$ 800 mil. A empreiteira principal do projeto em Lusaka foi a Asesco, a quem a Fifa pagou em duas prestações, de US$ 347.826 e US$ 347.343. Lombe Mulenga, diretor da companhia, recorda que "construímos o campo mas não a piscina, porque a piscina não estava incluída no projeto. Talvez o campo tenha sido negligenciado pelos usuários, daí a cama crescida".

"Estamos no negócio da construção, e nosso trabalho era construir de acordo com o projeto apresentado pelo cliente. Não somos profissionais da administração de futebol e portanto não temos como saber se estamos ou não diante de um ativo desperdiçado. Creio que a questão do uso deveria ser respondida pela organização administrativa e por outros interessados no sistema de futebol do país", acrescentou.

Perguntado se sentia haver acontecido uso indevido de verbas, Mulenga respondeu que "não estamos em posição de saber, porque só fomos pagos pelas obras executadas e nada mais, como mostram os registros da federação zambiana e da Fifa".

NOVO CENTRO

O último item do Projeto Gol em Zâmbia era um centro técnico em Kitwe, na província de Copperbelt. Foi aprovado cinco anos trás com orçamento de US$ 400 mil, mas nenhum dinheiro foi desembolsado ainda. As autoridades do futebol afirmam que o plano foi suspenso quando um novo legislativo municipal foi eleito e exigiu alto preço pelos quatro hectares de terreno que seriam requeridos.

Julio Chiluba, diretor de administração e competições na federação zambiana de futebol, disse que "é culpa do legislativo local. Eles nos prometeram um terreno a custo nominal mas depois mudaram de ideia e começaram a cobrar um preço inaceitável. A Fifa disse que não tinha como gastar dinheiro com o terreno, e a Fifa estava certa".

O projeto foi transferido agora a Luanshya, na mesma província, mas há um novo atraso. "Pessoas cultivaram as terras em questão", disse Chiluba, 77. "Teria sido ruim para nós destruir as safras. Por isso vamos permitir que as colham e depois começaremos."

Chiluba, antigo diplomata que trabalha para a federação zambiana desde 1994, tem adesivos da Fifa na porta de seu escritório e acredita que a organização tenha impacto positivo, "a começar da Football House, que tornou mais fácil para a federação empregar mais pessoal; antes disso, alugávamos um conjunto de quatro salas na cidade e tínhamos pouco espaço de trabalho".

"Todos esses projetos sobre os quais estamos falando foram originados por Blatter. Somos gratos, porque fizeram muita diferença para o futebol da Zâmbia e da África em geral: blocos administrativos, centros técnicos, acomodações. Eles são muito dispendiosos. Somos muito gratos à Fifa pelos benefícios que colhemos durante o tempo dele no poder", afirma Chiluba.

POLÍCIA

Enquanto ele conversava conosco, na terça-feira (26), mais de uma dúzia de policiais à paisana se preparavam para invadir o Baur Au Lac, um hotel cinco estrelas em Zurique, onde dirigentes da Fifa estão reunidos para a assembleia anual da organização, e lá realizarem uma série de detenções.

Lynch afirma que os acusados supostamente operavam um esquema "escancarado, sistêmico e de raízes profundas" para "adquirir milhões de dólares em subornos e propinas". Mas a despeito dessa crise institucional sem precedentes, a Fifa insiste em que a eleição de sua liderança seguirá como programada.

Blatter enfrenta o príncipe Ali bin al-Hussein, da Jordânia, depois do abandono da disputa por Michael van Praag, o presidente da federação holandesa, e do ex-jogador Luís Figo. Issa Hayatou, presidente da CAF e um dos dez membros do comitê executivo da Fifa que foram interrogados em Zurique, declarou que seu continente está unido no apoio ao atual presidente.

Kalusha Bwalya, membro do comitê executivo da CAF e presidente da federação zambiana, disse que "ele é o único candidato que sabemos estar apoiando o futebol há muito tempo. Fez muitas coisas boas pela Zâmbia especialmente e pela África em geral. Ele é um homem bom, e o melhor candidato. Fiquei cético com as pessoas que me procuraram porque elas não sabiam o que desejam fazer; talvez tenham sido enviados por terceiros. Sepp Blatter conta com a nossa confiança".

COPA

Blatter sempre terá um lugar especial na história, depois de 2010, quando se tornou o primeiro presidente da Fifa a realizar uma Copa do Mundo na África. "Não creio que, com outra pessoa qualquer na Fifa, a África do Sul teria vencido", acrescentou Bwalya.

Como maior das seis confederações continentais, a CAF é a base primária de poder para Blatter. Os presidentes de suas federações o veem como um dos seus, diz o jornalista esportivo Kennedy Gondwe, e tendem a sentir que os demais candidatos não conhecem a região e a tratarão como nota de pé de página.

"Independentemente do que se queira dizer sobre Sepp Blatter –quer você o ame ou o despreze–, há coisas notáveis que ele fez pela África", prosseguiu Gondwe. "Acho que ele sabe que, se você deseja ser presidente da Fifa, precisa do apoio da África".

"Graças ao projeto da Fifa, a federação de Zâmbia tem sede própria e não precisa pagar aluguel; isso permite economizar muito dinheiro. E o que você vê em Zâmbia é o mesmo que verá no Lesoto e no Malaui. Nenhum outro presidente levou uma Copa do Mundo à África. Pode-se afirmar que ele o fez por vantagem própria, mas ainda assim o fez", acrescentou Gondwe.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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