Folha de S. Paulo


Ex-catador de papelão vira engenheiro e fatura R$ 1,5 milhão por mês

Da fartura na roça à extrema pobreza na cidade grande. A geada histórica que destruiu plantações no norte do Paraná, em 1975, provocou um "furacão" na vida de Sergio Aparecido Fagundes, 45, e na de sua família.

O desastre natural os forçou a migrar de Sertaneja (a 430 km de Curitiba) para o centro de Londrina (PR) em busca de trabalho. A vida na cidade, no entanto, não se mostrou tão acolhedora para os adultos que não possuíam nenhuma capacitação profissional, como os pais de Sergio.

A situação de extrema pobreza levou o paranaense, então com sete anos, e o irmão mais novo, Silvio, às ruas em busca de papelão e outros materiais recicláveis, que rendiam R$ 10 ao final do dia para a dupla.

Aos 11, o garoto não teve dúvidas ao escolher uma profissão. "Eletricista é o que vou ser quando crescer." Realizou uma série de cursos na área.

Aos trancos e barrancos e com uma dívida a perder de vista, Sergio conquistaria o diploma em engenheira elétrica, aos 36 anos.

Hoje, empresário e empreendedor, o ex-catador de papelão fatura R$ 1,5 milhão mensais consertando e fabricando componentes para máquinas elétricas e geradores de energia à frente da Insight Energy.

Leia a seguir o depoimento à Folha.

*

Como muitas pessoas de origem humilde, eu era pobre, da roça. Toda a minha família vem da agricultura. Viemos para a cidade em 1975, ano da geada histórica no Paraná, que acabou com o cultivo do café, que dava mais emprego.

Na roça, nunca tivemos casa própria, éramos arrendatários, plantávamos e criávamos animais. Já na cidade, meu pai comprou um terreno e fez uma casinha pequena de madeira. No sítio, não tinha aparelhos eletrônicos nem conforto da cidade, porém, não faltavam alimentos.

Na cidade, a gente sofreu, porque meu pai, sem escolaridade nenhuma, se submeteu a trabalhos com remuneração bem baixa. Começou a dificuldade geral. Diferentemente da roça, ficamos restritos a um espaço, onde não se pode plantar, não se pode fazer nada.

Meu pai trabalhava de auxiliar de produção em uma empresa de café, ganhava um salário mínimo, que não era suficiente para a família. Minha mãe costurava como complementação de renda.

Não tínhamos roupa e sapato. Era uma época de extrema pobreza, miséria.

Aos sete anos, vi essa situação: a dificuldade da minha mãe para conseguir alimento, transformar um quilo de arroz em comida para uma semana, fazer milagre com um salário mínimo, com quatro, cinco crianças. Enquanto meu pai trabalhava quase 14 horas por dia.

Fui procurar algo para fazer e a única coisa que dava era recolher material reciclável para vender.

Comecei a catar papel na rua. Não era fácil trabalhar e estudar. Meus pais exigiam que eu fosse para a escola, era uma premissa.

Trabalhava meio período catando papel na rua e à tarde estudava. Ganhava por dia no máximo R$ 10.

No caminho de volta do trabalho, tinha uma pequena mercearia, onde comprava arroz, feijão, óleo, mantimento para levar para casa.

O que sobrava, muitas vezes, era o dinheiro da passagem de volta ou retornava os cerca de 10 km a pé.

Na rua em que eu morava, dois vizinhos tinham uma vida muito boa se comparada a nossa. Meus coleguinhas tinham roupa de marca, bicicleta, jaqueta. Eu mal tinha um Conga ou um Kichute, e se rasgava, minha mãe costurava.

Eu procurei saber o que fazia o pai daquela família que tinha uma vida diferente da nossa. Os filhos dele não trabalhavam na rua, além de ele sempre almoçar em casa e ter carro.

Um dos meninos me falou: 'Meu pai é eletricista'. Eu pensei: 'o que é isso?'. 'Eletricista é o que vou ser quando crescer porque não quero que meus filhos passem por isso'.

No começo, juntava papelão no saco, porque carrinho era coisa de luxo, depois evolui para uma caixa de papel grande que enchia para vender no centro.

Em um determinado dia, estava passando com aquelas caixas de papel na cabeça e alguém de cima jogou um saco de água. Sofria muita humilhação.

DE VOLTA À ROÇA

Passei quatro anos pegando coisa para vender. Foi quando meu pai desistiu e voltamos para uma chácara bem próxima à cidade. Cultivávamos bicho da seda e verduras para vender na cidade.

Aos 16 anos, busquei saber onde tinha o curso de eletricista. Entrei no Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial]. Fiz curso de eletricista, instalador predial, eletricista de comandos elétricos e eletrotécnica, que duraram até os meus 19 anos. Eu não pagava nada.

Continuei trabalhando com o meu pai e estudando normalmente.

Quando completei 18 anos, arrumei meu primeiro emprego, como açougueiro. Dez dias depois, fui chamado para trabalhar em uma empresa de energia elétrica, em 1990. A minha meta era ser eletricista.

Ao final de um ano, fui promovido. Com 19 anos, me casei, tive minha primeira filha. Aos 24, fui convidado a dar aula no Senai.

ENGENHEIRO

Fiquei quatro anos dando aula. Veio o primeiro curso de engenharia elétrica para Londrina. Entrei na segunda turma da Unopar [Universidade Norte do Paraná], em 2000.

Ganhava R$ 1.500 por mês e meu curso custava R$ 800. Não consegui Fies [Fundo de Financiamento Estudantil] porque não tinha fiador. A dificuldade era muito grande. Morávamos em uma casa de 40 m².

No primeiro ano de faculdade, eu fui reprovado por não conseguir acompanhar.

Quando me formei, meu salário já era de R$ 4.000. Mas não conseguiria pagar escola, comprar uma casa e dar conforto à família. Não era engenheiro registrado.

Pedi a conta, após 20 anos na empresa, em 2009. Tinha dois filhos e uma casa própria, humilde.

Saí para trabalhar fazendo reparo em geradores para empresas. Meu ex-chefe pediu para ser sócio. Depois de um tempo, saí da sociedade só com um notebook.

Em 2010, comprei o CNPJ de uma empresa para evitar a burocracia de abrir uma nova. Continuei trabalhando na mesma área, com margem de lucro pequena para ser competitivo no mercado.

Com um mês, tinha um funcionário, com dois, quatro. Cheguei a 165 colaboradores em 2013, trabalhando no ramo de montagem e eletroeletrônica, fazendo reparo em empresas que têm máquinas elétricas de grande porte e geradores de energia elétrica.

'HOJE, TENHO'

Hoje, tenho cerca de 80 colaboradores, contrato conforme a demanda.

Faturo em torno de R$ 1,5 milhão por mês. A meta para todo o ano que vem é R$ 20 milhões.

Hoje, só de equipamento de ensaio, tenho cerca de R$ 5 milhões.

No final de 2014, comprei um apartamento em Londrina. Viajo de avião toda semana. Tenho quatro caminhões, vários carros.

Tenho três empresas, uma em Londrina, duas em Cambé (PR). São todas do mesmo ramo.

Tenho parcerias com a GE, com duas empresas americanas, engenheiros registrados que fazem a parte de relações exteriores. Ano que vem queremos duplicar nossa meta, faturamento e colaboradores.

Em 2010, comecei com um notebook.

Os cursos do Senai foram fundamentais. Tive três passagens por lá, em uma aprendi a profissão na área técnica, a segunda como professor, depois fiz a pós-graduação em gestão de projetos.

Toda a bagagem que o Senai me deu transformou minha vida. Eu podia ter chegado a eletricista e ficado até hoje. Não estaria nessa vida que tenho, trabalhando mais de 14 horas por dia, viajando a semana inteira.

O MENINO VIVE

Acho que daquele menino tenho quase tudo em mim. Tinha alegria mesmo estando na 'pior situação do mundo'.

Costumo viver cada dia como um novo. O mais importante é a experiência que vou transmitir para minha equipe, filhos e parceiros.

Hoje, enxergo a ansiedade das pessoas que querem ter as coisas na hora. Eu digo: 'Calma, espera, você vai conseguir'. É o tempo.

Eu sei que a pessoa só vai para frente se ela quiser, não adianta nada pagar curso, carregar no colo. A pessoa tem que ter aquilo dentro dela como vontade própria, tem que queimar como paixão.

Esse sentimento tem que estar dentro de você, não importa a dificuldade que tenha, o caminho que tenha que trilhar, o importante é que você quer alcançar seu objetivo.

Sem as oportunidades também não teria acontecido.

Eu penso para frente. Sempre tive a necessidade de melhorar minha casa, meus filhos, o trabalho. Essas necessidades foram me impulsionando para frente.


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