"Treinar um cão-guia para ajudar uma pessoa cega custa cerca de US$ 40 mil. Curar uma pessoa cega por tracoma em um país em desenvolvimento custa entre US$ 20 e US$ 50. Com o mesmo dinheiro, você pode conseguir um cão-guia para um cego ou pode curar de 400 a 2.000 pessoas da cegueira."
É com esse dilema que Peter Singer, professor de filosofia em Princeton, explica os fundamentos de um movimento conhecido como altruísmo eficaz. Orientados pelo cálculo e pela racionalidade, os adeptos dessa corrente buscam aplicar evidências científicas para determinar os meios mais eficientes de se impactar positivamente o mundo.
Essa mentalidade busca substituir o conceito tradicional de caridade, que –associado à religião– é orientado predominantemente pela emoção. Os doadores, neste modelo, são movidos pela empatia com os beneficiários. Não se considera a eficiência ou eficácia do dinheiro, mas sim o compromisso moral com o próximo que se materializa por meio da doação.
Em um país que está na 68ª posição no ranking global de doações, em que as doações representam apenas 0,23% do PIB comparado aos 2,1% dos EUA, essa discussão parece distante. Sobretudo se considerarmos a indisposição do brasileiro a falar sobre suas doações: em pesquisa recente realizada pelo IDIS, 87% dos doadores concordaram que as pessoas não devem contar que fazem doações.
O curioso é que a mesma pesquisa mostra que mais da metade dos brasileiros realizou doações em dinheiro em 2015 e que 30% da população faz doações de forma recorrente. Isto é, a prática da filantropia já está instalada no país, mas o debate acerca dos melhores métodos é ainda incipiente.
Se entendemos que a filantropia não é apenas o exercício da generosidade, mas também o uso de nossos recursos na promoção de um mundo melhor, fica clara a necessidade de avaliarmos o impacto do dinheiro que doamos. Mas é preciso ponderar: racionalizar ao máximo a filantropia e extirpar a emoção do processo coloca em xeque características fundamentais do setor social.
Apostando no altruísmo eficaz: quem doaria para projetos inovadores ainda sem resultados a apresentar? Quantas causas não ficariam órfãs por não conseguirem apresentar evidências de seus resultados? Como se apostaria em ideias de longo prazo ou ONGs de advocacy que busquem mudar a legislação?
Na prática, há limites tanto para a razão quanto para a emoção. E, como no Brasil as ONGs arrecadam uma média inferior a 10 mil reais por mês, não devemos perder muito tempo com falsos dilemas. O que precisamos é desenvolver uma filantropia que articule essas duas visões e encontre um ponto de equilíbrio possível.
É neste contexto que surge a Filantropia de Portfólio.
Essa nova corrente tem o desafio de integrar a filantropia a um planejamento financeiro sustentável, combinada ao consumo consciente e ao investimento responsável.
Para criar mudanças positivas articuladas com sua visão de mundo, é necessário planejamento. A filantropia não deve ser uma ação esporádica, mas sim uma área do planejamento financeiro de cada um. O dinheiro deveria ser dividido entre investimentos, gastos e doações.
A constância das doações é importante justamente para formação de uma visão filantrópica, capaz de orientar a alocação dos recursos observando as preferências e restrições do doador, mas também considerando as diferentes abordagens, causas e estratégias encontradas no setor social.
Como consequência de um planejamento, o portfólio de doações costuma prezar pelo equilíbrio de abordagens de organizações apoiadas, afinal o impacto que o doador deseja ver no mundo dificilmente se restringe a uma só organização ou causa.
Para que todo o setor social possa se desenvolver, e para que a sociedade como um todo supere os falsos dilemas entre razão e emoção na hora de doar, precisamos de mais filantropos de portfólio. Quem sabe com isso podemos ter esperança de um país melhor, menos desigual, menos corrupto no curto, no médio e no longo prazo.
O desafio da filantropia não é a batalha entre cabeça e coração, mas sim criar uma parceria harmoniosa entre os dois.
LEONARDO LETELIER, presidente da Sitawi Finanças do Bem; RICARDO BORGES MARTINS, professor de advocacy da FGV